DICOGE 1.2
PROCESSO Nº 2010/83224 – BRASÍLIA – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Parecer 461/2012-E
IMÓVEL RURAL – Aquisição por pessoa jurídica brasileira cuja maioria do
capital social pertence a estrangeiros residentes fora do Brasil ou a
pessoas jurídicas com sede no exterior – Equiparação com a pessoa jurídica
estrangeira para fins de sujeição ao regime estabelecido pela Lei n.º
5.709/1971 – § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971 – Não recepção pela
Constituição Federal de 1988 – Alargamento subjetivo da limitação à
apropriação privada de bem imóvel rural desautorizada pelo artigo 190 da CF/1988
– Redação original do artigo 171 da Constituição de 1988 reforça a revogação
– A distinção, lá prevista de modo expresso, entre empresa brasileira e
empresa brasileira de capital nacional foi instituída com vistas a
benefícios e a tratamento diferenciado, mas não para restrições de direitos
– O artigo 171, ao contemplar reserva legal qualificada, é incompatível com
restrições genéricas – A reforma introduzida pela EC n.º 6/1995 confirma a
não recepção – A limitação era consentânea com o § 34 do artigo 153 da CF/1967,
com a redação dada pela EC n.º 1/1969, mais restritivo quanto ao tratamento
dispensado ao tema – Mudança da orientação normativa.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
O Colendo Conselho Nacional de Justiça, mediante decisão monocrática do
Excelentíssimo Senhor Ministro Gilson Dipp, à época Corregedor Nacional de
Justiça, lançada, no dia 13 de julho de 2010, nos autos do pedido de
providências n.º 0002981-80.2010.2.00.0000, recomendou “fortemente a
imediata adoção pelas Corregedorias locais ou regionais junto aos Tribunais
respectivos que determinem aos Cartórios de Registro de Imóveis e
Tabelionatos de Notas que façam observar rigorosamente as disposições da Lei
n.º 5.709 de 1971 quando se apresentarem ou tiverem de lavrar atos de
aquisição de terras rurais por empresas brasileiras com participação
majoritária de estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas” (fls. 08).
(grifei)
Orientou-se por decisão tomada, em 17 de setembro de 2008, pelo Tribunal de
Contas da União, quando examinada representação da SECEX do Amazonas e,
principalmente, pelo parecer do Consultor-Geral da União, Dr. Ronaldo Jorge
Araújo Viera Junior, de 03 de setembro de 2008 (Parecer CGU/AGU n.º 01/2008
– RVJ), aprovado, em 19 de agosto de 2010, pelo Advogado-Geral da União, Dr.
Luís Inácio Lucena Adams (Parecer n.º LA – 01), e, em seguida, em despacho
publicado no Diário Oficial da União de 23 de agosto de 2010, pelo
Excelentíssimo Senhor Presidente da República, àquele tempo Luiz Inácio Lula
da Silva, para os fins do disposto nos artigos 40 e 41 da Lei Complementar
n.º 73, de 10 de fevereiro de 1993(1) (fls. 03/09 e 29/38).
Diante da recomendação dirigida aos órgãos da administração judiciária,
reforçada pelos efeitos vinculantes do Parecer LA – 01 para os órgãos e as
entidades da Administração Pública Federal, esta Corregedoria Geral da
Justiça, ao aprovar, em 08 de setembro de 2010, o parecer de autoria do
ilustre magistrado Roberto Maia Filho, por meio de decisão do Excelentíssimo
Senhor Desembargador Antonio Carlos Munhoz Soares, que lhe atribui caráter
normativo, acolheu a exortação do Corregedor Nacional da Justiça, com adoção
das providências pertinentes (fls. 40/50 e 51).
Admitida a recepção do § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709, de 7 de outubro
de 1971(2), pela Constituição de 1988, determinou-se aos tabeliães de notas
e aos oficiais de registro a observação dos artigos 10, 11 e 12 da Lei
referida(3), mesmo em relação às pessoas jurídicas brasileiras cuja maioria
do capital social pertença a estrangeiros não residentes no país ou a
pessoas jurídicas estrangeiras sediadas no exterior.
Contudo, recentemente, o Colendo Órgão Especial do Egrégio Tribunal de
Justiça de São Paulo, em julgamento ocorrido em 12 de setembro de 2012, em
que ficou vencido apenas o Excelentíssimo Senhor Desembargador Ribeiro da
Silva, estabeleceu, à luz do venerando acórdão sufragado pela expressiva
maioria de seus membros, que o § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971 não
foi recepcionado pela CF/1988 (Mandado de Segurança n.º
0058947-33.2012.8.26.0000, relator Desembargador Guerrieri Rezende).
Respeitadas as abalizadas compreensões em sentido contrário, fundadas,
particularmente as acima mencionadas, em substanciosos fundamentos, penso
acertada a posição firmada pelo Colendo Órgão Especial, que, no exercício de
atribuição jurisdicional delegada da competência do pleno do Egrégio
Tribunal de Justiça de São Paulo, concretizou, com a devida vênia, a
interpretação que melhor se afina com a ideologia constitucional.
A regra do artigo 190 da CF/1988, ao dispor que “a lei regulará e limitará a
aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou
jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização
do Congresso Nacional” (grifei) – em dispositivo inserido no Capítulo III
(Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária) do Título VII (Da
ordem econômica e financeira) da Carta Magna -, impôs restrição à
apropriação privada e, portanto, à livre iniciativa, inspirado na soberania
nacional, fundamento da nossa República e princípio da ordem econômica
(artigos 1.º, I, e 170, I, da CF/1988(4)), e com a finalidade de garantir o
desenvolvimento nacional, um dos objetivos de nosso País (artigo 3.º, II, da
CF/1988(5)).
Agora, tal restrição pontual, embora confortada por princípios
constitucionais fundamentais e setoriais, que justificam, num juízo de
ponderação, o afastamento de outros, também fundamentais e setoriais, não
comporta alargamento, tampouco interpretação ampliativa que, creio, tornaria
injustificável, num balanceamento dos bens em conflito, a sucumbência do
princípio da livre iniciativa, também fundamento da República brasileira e
da ordem econômica (artigos 1.º, IV, e 170, caput, da CF/1988(6)), do
solidarismo, uma das diretrizes de nosso País (artigo 3.º, I, da CF/1988(7)),
e da garantia do direito de propriedade (artigo 5.º, XXII, da CF/1988(8)),
igualmente princípio setorial da ordem econômica (artigo 170, II, da CF/1988(9)).
Quero dizer: não deve recair sobre pessoas jurídicas brasileiras –
constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País -,
ainda que a maioria do capital social delas se concentre sob o poder de
estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas, com residência e sede no
exterior, respectivamente.
A circunstância do controle da pessoa jurídica brasileira ser exercido por
estrangeiros não é, à luz da Constituição de 1988, fator discriminatório
legítimo entre pessoas jurídicas brasileiras: não o é, realce-se, para impor
restrições, limitações à apropriação privada, mas, em certas situações,
poderá sê-lo para definir benefícios, incentivos, o que é diverso.
Na trilha do lapidar trabalho monográfico de Celso Antônio Bandeira de Mello
sobre o princípio da igualdade, afirmo: malgrado existente, em abstrato,
justificativa racional para, considerada a nacionalidade dos detentores da
maioria do capital social da empresa, conferir tratamento jurídico diverso
entre pessoas jurídicas brasileiras, é certo que, in concreto, para fins de
apropriação privada de imóvel rural, tal discrímen é ilegítimo em face do
texto constitucional. Na sua justa obtemperação: importa que exista mais que
uma correlação lógica abstrata entre o fator diferencial e a diferenciação
consequente. Exige-se, ainda, haja uma correlação lógica concreta, ou seja,
aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo
constitucional.
E isto se traduz na consonância dela com as finalidades reconhecidas como
valiosas na Constituição (10).
Aliás, para resguardar efetiva eficácia à posição a qual não se adere, seria
necessário estender ainda mais a restrição focalizada, contemplando não
apenas o controle interno ordinário, estabelecido à vista da propriedade
acionária, da propriedade das quotas sociais, mas, também, outras formas de
manifestação do poder de controle: o controle interno não ordinário e o
controle externo. Explico-os, com recurso à lição de Luís Roberto Barroso,
que se escora em outros ilustres doutrinadores:
O poder de controle interno ordinário é aquele exercido em função da
propriedade acionária. Como registra Fábio Konder Comparato em estudo
clássico sobre o assunto, datada de 1983: “À primeira vista, o controle
interno, isto é, aquele cujo titular atua no interior da própria sociedade,
parece fundar-se unicamente na propriedade acionária. Sua legitimidade e
intensidade dependeriam, em última análise, do número de ações ou votos de
que se é titular, proporcionalmente à totalidade dossufrágios possíveis”. O
controle interno não ordinário se verifica quando o poder de comando
empresarial já não deriva da propriedade acionária, fundando-se, de forma
diversa, em acordo de acionistas, contratos ou outros expedientes legais.
O chamado controle externo, por sua vez, é o poder de controle exercido de
fato sobre a sociedade, independentemente de suas estruturas sociais. Nos
termos consagrados pela jurisprudência norte-americana, trata-se de uma
influência dominante que pode ser exercida por meios diversos do voto. Sobre
o controle externo, Fábio Konder Comparato registra que “o controlador, no
caso, não é necessariamente nem membro de qualquer órgão social, mas exerce
o seu poder de dominação ab extra”. O controle externo pode resultar, por
exemplo, de uma situação de endividamento da sociedade, passando o credor a
comandar o negócio da devedora. A doutrina identifica diversos outros
exemplos de mecanismos que ilustram o controle externo. …
… Em qualquer caso, a doutrina sublinha que o conceito formal de controle
como sinônimo de titularidade da maioria das ações ordinárias não é
suficiente, em muitas ocasiões, para lidar com os movimentos empresariais
modernos (11). (grifei)
Entretanto, o texto constitucional não possibilita tão elástica compreensão.
A limitação admitida pelo poder constituinte originário tomou por fundamento
a nacionalidade da pessoa jurídica, não a do seu capital social, e tampouco
a dos que exercem o poder de controle, em qualquer uma de suas
manifestações. A noção de capital é distinta do conceito de empresa. E o
poder constituinte, ao referir-se ao controle dos investimentos de capital
estrangeiro, o fez em outro dispositivo constitucional (artigo 172(12)), com
alusão à lei de regulamentação, cuja função é estranha à da Lei n.º
5.709/1971.
De todo modo, ainda sob a visão do entendimento preterido, ferir-se-ia o
princípio da isonomia – com atribuição de regramentos distintos para
situações equivalentes -, se, para fins de limitação de aquisição de
propriedade rural por estrangeiro, fosse levado em conta somente o poder de
controle interno ordinário.
Mas, para incluir as demais formas de manifestação do poder de controle,
far-se-ia equiparação sequer autorizada pelo texto do § 1.º do artigo 1.º da
Lei n.º 5.709/1971 e, para piorar, alargando a restrição à livre iniciativa
e ao direito de propriedade.
Trata-se de mais um sinal da sua não recepção pela nova ordem jurídica
fundante: a sua aplicação compromete a unidade lógica, a coerência do
sistema jurídico.
Ademais, a Lei n.º 5.709/1971 e o Decreto que a regulamenta (n.º 74.965, de
26 de novembro de 1974) não têm mecanismos que permitam fiscalizar e
controlar a aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas brasileiras
equiparadas às estrangeiras em função da nacionalidade dos que exercem o
poder de controle interno não ordinário ou o poder de controle externo.
Cuida-se de outro sinal, sintoma, da insubsistência da equiparação com
propósito limitativo de direitos. Denota que, para fins de apropriação
privada de bem imóvel rural, a equiparação não tem amparo na Constituição de
1988. Se tivesse, as necessárias modificações, com alterações indispensáveis
à adaptação da vetusta lei infraconstitucional aos movimentos empresariais
contemporâneos, teriam sido implementadas.
Sob outro prisma, a regra emergente do artigo 171 da CF/1988(13), revogado
pela Emenda Constitucional n.º 6, de 15 de agosto de 1995(14), ao conceituar
a empresa brasileira e a empresa brasileira de capital nacional, de maneira
a distingui-las pela titularidade de seu controle efetivo, de fato e de
direito, o fez com a finalidade de conceder à última delas proteção e
benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas
estratégicas para defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do
País, e prever, em seu favor, tratamento preferencial, na aquisição de bens
e de serviços pelo Poder Público.
O exame do dispositivo revela, em primeiro lugar, que o constituinte, não
ignorando as distintas formas de manifestação do poder de controle, tratou
de modo diferenciado, quando quis, e de forma expressa, a empresa brasileira
de capital nacional e a empresa brasileira com controle centralizado em mãos
estrangeiras. Dessa forma, ao confrontarmos os artigos 171 e 190 – com este
referindo-se exclusivamente à pessoa jurídica estrangeira -, infere-se a não
recepção da regra do § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971: a
equiparação por ela levada a cabo restou desautorizada.
Além disso, e também em reforço da não recepção, nota-se que o discrímen é
válido para instituir benefício, privilégio, proteção especial, tratamento
diferenciado às empresas brasileiras de capital nacional, mas não para
limitar direitos nem, particularmente, o acesso de empresas brasileiras sob
controle efetivo estrangeiro à propriedade imobiliária rural. O foco, nessa
hipótese, é a empresa brasileira de capital nacional, é uma ação, uma
intervenção estatal em prol dela, e não, portanto, a empresa sob controle
alienígena, tampouco a imposição de uma limitação de direito a esta.
Em outras palavras: com vistas ao desenvolvimento econômico e à soberania
econômica nacional, idealizou-se e projetou-se, para tanto, o
estabelecimento de privilégios, benefícios e de incentivos às empresas
brasileiras de capital nacional – este é o instrumental -, não as restrições
e as limitações de direitos. Reflexo disso, a propósito, é a redação
original do § 1.º do artigo 176(15) (modificada pela EC n.º 6/1995(16)), que
reservou aos brasileiros e às empresas brasileiras de capital nacional a
pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de
energia elétrica.
Com a EC n.º 6/1995, a incompatibilidade vertical do § 1.º do artigo 1.º da
Lei n.º 5.709/1971 fica mais manifesta. Se houvesse compatibilidade com o
novo texto constitucional, a sua aplicação, de qualquer forma, estaria
vedada, pois inadmissível o efeito repristinatório, a restauração da
eficácia da regra revogada, salvo expressa referência, inocorrente, na lei
revogadora da que revogou aquela.
No entanto, sequer essa é a hipótese. A modificação introduzida prestigiou,
na realidade, a não recepção. Ao alterar as redações do inciso IX do artigo
170(17) e do § 1.º do artigo 176 e ao revogar o artigo 171 e, especialmente,
a definição constitucional distintiva da empresa brasileira de capital
nacional, evidenciou, mais fortemente, a inadmissibilidade de restrição à
apropriação privada orientada, não pela nacionalidade da pessoa jurídica,
mas pela dos que detém o seu controle efetivo.
Não se pretende, aqui – seara inadequada -, discutir a viabilidade do
legislador infraconstitucional instituir tratamento diferenciado e
incentivos às empresas brasileiras de capital nacional. Mas, sim, realçar
que o fim da definição constitucional distintiva reafirma a
inadmissibilidade das limitações de direitos guiadas pela nacionalidade do
poder de controle das empresas brasileiras, assim compreendidas aquelas
constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País.
Seguramente, fragilizou a força argumentativa em prol da equiparação feita
pelo § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971.
A mensagem transmitida pela emenda constitucional é em outro sentido.
Proíbe, in concreto, que, a pretexto da tutela da soberania nacional, da
integridade do território, da segurança do Estado e da garantia do
desenvolvimento nacional, ampliem-se, em detrimento da livre iniciativa e da
apropriação privada das pessoas jurídicas brasileiras sob controle
estrangeiro, as restrições ao acesso à propriedade rural.
Diante da situação tensiva examinada, estes últimos valores constitucionais
(a livre iniciativa e a propriedade privada) prevalecem, sopesados os
princípios em rota de colisão, sobre os primeiros (a soberania e o
desenvolvimento nacional): enfim, à luz dos ensinamentos de Robert Alexy
(18), têm, em concreto, maior peso e, com isso, precedência.
Eros Grau, para quem ainda é possível assegurar um tratamento diferenciado
às empresas brasileiras de capital nacional, refere-se, ao desenvolver seu
raciocínio, apenas às concessões de incentivos, jamais – é sintomático -, a
eventuais restrições àquelas controladas por estrangeiros não residentes ou
sediados no exterior:
À revogação do art. 171 e seus parágrafos correspondeu a revogação de uma
permissão forte para incentivos (§ 1.º) e de um dever de diferenciação (§
2.º). Nada senão isso, nada mais do que isso.
Não obstante essa revogação, de permissão forte para incentivos, a
Constituição [que se deve interpretar em seu todo, não em tiras] contempla
permissão fraca para incentivos, no setor (atividades consideradas
estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do
País, especialmente em setores imprescindíveis ao desenvolvimento
tecnológico nacional).
Assim, da revogação da permissão forte no § 1.º do art. 171 não decorre
proibição da concessão dos incentivos; ela apenas transforma o direito, no
sentido de admitir possam surgir regras que conformem o âmbito da permissão
fraca [v.g., uma lei que estabeleça limites para a concessão dos
incentivos].
Em suma: parece-me inquestionavelmente óbvio não importar, a revogação do
art. 171, vedação à concessão, pela lei ordinária, de incentivos a empresa
brasileira diferenciada pela circunstância de ser pessoa jurídica
constituída e com sede no Brasil, cujo controle efetivo esteja, em caráter
permanente, sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas
domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno
– entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade direta ou
indireta de, no mínimo, 51% (cinquenta e um por cento) do capital com
direito a voto e o exercício, de fato ou de direito, do poder decisório para
gerir suas atividades, inclusive as de natureza tecnológica (19). (grifei)
De mais a mais, ainda que, na possibilidade de um tratamento diferenciado,
vislumbre-se, a contrario sensu, a admissibilidade de restrições em função
da nacionalidade estrangeira dos detentores do poder de controle da empresa
brasileira, aquelas jamais poderiam ser genéricas.
Jamais, creio, poderiam contemplar a limitação à apropriação privada
plasmada no § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971, que, desprezando a
reserva legal qualificada, é dissociada de qualquer propósito específico
voltado ao atendimento e ao fomento de atividades estratégicas para a defesa
nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País.
Trata-se de restrição incondicionada a certo fins. É desprovida de vocação
própria, particular, direcionada a planos e a programas nacionais, regionais
e setoriais de desenvolvimento (artigo 48, IV, da CF(20)). Há, em suma, sob
esse ângulo, mais um fundamento para rejeitar a recepção da regra pela
Constituição de 1988.
É certo, por outro lado, que a vontade do legislador nem sempre é um
confiável guia hermenêutico. No caso concreto, contudo, porque preserva a
unidade da Constituição, porque alinhada com a ideologia constitucional, a
exposição de motivos n.º 37, de 16 de fevereiro de 1995, que instruiu a
proposta de aperfeiçoamento do texto constitucional que culminou com a
edição da EC n.º 6/1995, respalda a tese da não recepção:
Excelentíssimo Senhor Presidente da República, (…).
2. A proposta tenciona eliminar a distinção entre empresa brasileira e
empresa brasileira de capital nacional e o tratamento preferencial concedida
a esta última. Para tanto, firma-se o conceito da empresa brasileira como
aquela constituída sob as leis brasileiras e com sede e administração no
País.
3. A discriminação ao capital estrangeiro perdeu sentido no contexto de
eliminação das reservas de mercado, maior interrelação entre as economias e
necessidades de atrair capitais estrangeiros para complementar a poupança
interna. Com relação ao tratamento preferencial nas aquisições de bens e
serviços por parte do Poder Público, a proposta corrige imperfeição do texto
constitucional, passando a favorecer os produtos produzidos e os serviços
prestados no País, ao invés de empresas classificadas segundo a origem do
capital. Com isto, pretende-se restabelecer o importante instrumento de
compra do Estado para estimular a produção, emprego e renda no País. É digno
de nota que a proposta vincula o tratamento preferencial conferido aos
produtos e serviços produzidos internamente à igualdade de condições
(preços, qualidade, prazos etc.) entre os concorrentes. (…).
5. Note-se que as alterações propostas não impedem que o legislador
ordinário venha a conferir incentivos e benefícios especiais a setores
considerados estratégicos, inexistindo qualquer vedação constitucional nesse
sentido.
6. Com o mesmo escopo, a Emenda efetua alteração no § 1.º do art. 176, (…).
Pretende-se, assim, viabilizar a atração de investimentos estrangeiros para
o setor de mineração e energia elétrica, mantido o controle da União
mediante autorização ou concessão.
7. Julgamos, Senhor Presidente, que as alterações propostas irão ao encontro
do projeto de desenvolvimento econômico e social propugnado por Vossa
Excelência manifestando-se compatível com a construção de uma economia mais
moderna, dinâmica e competitiva. (…).
Pode discordar-se, criticar-se o espírito que moveu o constituinte da
reforma, como o fez Paulo Bonavides, quando destacou que as mudanças
promovidas se inserem “no esquema de desnacionalização da economia
brasileira, fomentada pelo neoliberalismo instalado no poder”, abrem a
economia do País “à invasão do capital estrangeiro” e acarretam, “de certo
modo, uma eventual desnacionalização do subsolo e dos potenciais de energia
hidráulica”(21). Nada obstante, descabe ignorá-lo, em síntese, desprezar as
alterações operadas, mormente se harmônicas com o texto constitucional.
Calha, nesse momento, a observação de José Ortega y Gasset: a ninguém é dado
escolher o mundo em que se vive; é sempre este, este de agora. Não podemos
escolher o século nem a jornada ou data em que vamos viver, nem o universo
em que nos vamos mover. O viver ou ser vivente, o que é o mesmo, o ser homem
não tolera preparação nem prévio ensaio. A vida nos é disparada a
queima-roupa (22).
Por fim, convém acentuar que, à época da edição da Lei n.º 5.709/1971 e do
Decreto n.º 74.965/1974, vigia a Constituição Federal de 1967, com a redação
dada pela Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, que, no § 34 do seu artigo
153(23), era bem mais restritiva em matéria de apropriação privada de bem
imóvel rural: ao contrário da regra constitucional vigente, com referência
exclusiva aos estrangeiros, a revogada previa que a lei ordinária, ao
regular a aquisição de propriedade rural, estabeleceria condições,
restrições, limitações e outras exigências, mesmo para os brasileiros.
Naquele cenário, consequentemente, era aceitável a equiparação promovida
pelo § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971.
Aliás, o legislador poderia ter ido além. O texto constitucional
possibilitava previsões ainda mais restritivas. Contudo, alterado o quadro
jurídico, sob o influxo de novos valores ideológicos, políticos, sociais,
econômicos e culturais cultivados pela sociedade, inexiste espaço para
recepção questionada.
Por tudo isso, sustento, é necessária a mudança de orientação desta
Corregedoria. Inclusive, fundada aquela em recomendação da Douta
Corregedoria do Colendo Conselho Nacional de Justiça, a sugestão, penso, não
encontra óbice no decidido nos autos do pedido de providências n.º
0002981-80.2010.2.00.0000.
Pelo todo exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada
apreciação de Vossa Excelência propõe – a reboque da posição sufragada pelo
Colendo Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo -, a
revisão da orientação normativa definida com a aprovação do parecer n.º
250/10-E, lavrado nestes autos (fls. 77/87 e 88), e, assim, o reconhecimento
de que o § 1.º do artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971 não foi recepcionado pela
Constituição Federal de 1988, de sorte a dispensar os tabeliães e oficiais
de registro de observarem as restrições e as determinações impostas pela Lei
n.º 5.709/1971 e pelo Decreto n.º 74.965/1974, bem como do cadastramento no
Portal do Extrajudicial, em relação às pessoas jurídicas brasileiras cuja
maioria do capital social se concentre em poder de estrangeiros residentes
fora do Brasil ou de pessoas jurídicas com sede no exterior.
Se aprovado, sugiro, diante da relevância do tema e da orientação normativa
ainda hoje prevalecente, a publicação do parecer, para conhecimento geral e,
particularmente, dos tabeliães e oficiais de registro.
Sub censura.
São Paulo, 03 de dezembro de 2012.
(a) Luciano Gonçalves Paes Leme
Juiz Assessor da Corregedoria
(1) Artigo 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este
submetidos à aprovação do Presidente da República.
§ 1.º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial
vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a
lhe dar fiel cumprimento. § 2.º O parecer aprovado, mas não publicado,
obriga apenas as repartições interessadas, a partir do momento em que dele
tenha ciência.
Artigo 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União,
para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela
Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao
Presidente da República. (grifei)
(2) Artigo 1.º. O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica
estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel
rural na forma prevista nesta Lei. § 1.º Fica, todavia, sujeita ao regime
estabelecido por esta Lei a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a
qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a
maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior. (grifei)
(3) Artigo 10. Os Cartórios de Registro de Imóveis manterão cadastro
especial, em livro auxiliar, das aquisições de terras rurais por pessoas
estrangeiras, físicas e jurídicas, no qual deverá constar: I – menção do
documento de identidade das partes contratantes ou dos respectivos atos de
constituição, se pessoas jurídicas; II – memorial descritivo do imóvel, com
área, características, limites e confrontações; e III – transcrição da
autorização do órgão competente, quando for o caso.
Artigo 11. Trimestralmente, os Cartórios de Registros de Imóveis remeterão,
sob pena de perda do cargo, à Corregedoria da Justiça dos Estados a que
estiverem subordinados e ao Ministério da Agricultura, relação das
aquisições de áreas rurais por pessoas estrangeiras, da qual constem os
dados enumerados no artigo anterior. Parágrafo único. Quando se tratar de
imóvel situado em área indispensável à segurança nacional, a relação
mencionada neste artigo deverá ser remetida também à Secretaria-Geral do
Conselho de Segurança Nacional.
Artigo 12. A soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras,
físicas ou jurídicas, não poderá ultrapassar a um quarto da superfície dos
Municípios onde se situem, comprovada por certidão do Registro de Imóveis,
com base no livro auxiliar de que trata o art. 10. § 1.º As pessoas da mesma
nacionalidade não poderão ser proprietárias, em cada Município, de mais de
40% (quarenta por cento) do limite fixado neste artigo. § 2.º Ficam
excluídas das restrições deste artigo as aquisições de áreas rurais: I –
inferiores a 3 (três) módulos; II – que tiverem sido objeto de compra e
venda, de promessa de compra e venda, de cessão ou de promessa de cessão,
mediante escritura pública ou instrumento particular devidamente protocolado
no Registro competente, e que tiverem sido cadastradas no INCRA em nome do
promitente comprador, antes de 10 de março de 1969;
III – quando o adquirente tiver filho brasileiro ou for casado com pessoa
brasileira sob o regime de comunhão de bens. § 3.º O Presidente da República
poderá, mediante decreto, autorizar a aquisição, além dos limites fixados
neste artigo, quando se tratar de imóvel rural vinculado a projetos julgados
prioritários em face dos planos de desenvolvimento do País.
(4) Artigo 1.º. A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; (…).
Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I
– soberania nacional; (…).
(5) Artigo 3.º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: (…); II – garantir o desenvolvimento nacional; (…).
(6) Artigo 1.º. (…): (…); IV – os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa; (…).
Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, (…).
(7) Artigo 3.º. (…): I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.
(8) Artigo 5.º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…); XXII – é garantido o
direito de propriedade; (…).
(9) Artigo 170. (…): (…); II – propriedade privada; (…).
(10) Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1999. p. 22.
(11) Transferência de controle acionário de empresa de telecomunicações.
Restrições legais e administrativas. In: Temas de Direito Constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 341-362. t. III. p. 345-347.
(12) Artigo 172. A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os
investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e
regulará a remessa de lucros.
(13) Artigo 171. São consideradas: I – empresa brasileira a constituída sob
as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país; II –
empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja
em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas
físicas domiciliadas e residentes no país ou de entidades de direito público
interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da
maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder
decisório para gerir suas atividades. § 1.º A lei poderá, em relação à
empresa brasileira de capital nacional: I – conceder proteção e benefícios
especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas
para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do país; II –
estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao
desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:
a) a exigência de que o controle referido no inciso II do caput se estenda
às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato
e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia; b)
percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e
residentes no país ou entidades de direito público interno. § 2.º Na
aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial,
nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.
(14) Artigo 3.º. Fica revogado o art. 171 da Constituição Federal.
(15) Artigo 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e
os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do
solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A
pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a
que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou
empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as
condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de
fronteira ou terras indígenas.
(16) Artigo 176. (…). § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o
aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente
poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no
interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei,
que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se
desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. (grifei)
(17) Artigo 170. (..); IX – tratamento favorecido para as empresas
brasileiras de capital nacional de pequeno porte. (…).
(redação original)
Artigo 170. (…); IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno
porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País. (…). (redação dada pela EC n.º 6/1995) (grifei)
(18) Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.
São Paulo: Malheiros, 2008. p. 93-103.
(19) A ordem econômica na Constituição de 1988. 7.ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 305.
(20) Artigo 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52,
dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…); IV – planos e programas nacionais, regionais e setoriais de
desenvolvimento; (…).
(21) Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.
613.
(22) O homem e a Gente: inter-comunicação humana. Tradução de J. Carlos
Lisboa. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero Americana, 1973. p. 81.
(23) Artigo 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…). § 34. A
lei disporá sobre a aquisição da propriedade rural por brasileiro e
estrangeiro residente no país, assim como por pessoa natural ou jurídica,
estabelecendo condições, restrições, limitações e demais exigências, para a
defesa da integridade do território, a segurança do Estado e justa
distribuição da propriedade.
DECISÃO: Aprovo, atribuindo-lhe força normativa, o parecer do MM. Juiz
Assessor da Corregedoria e, assim, por seus fundamentos, que adoto, revejo a
orientação normativa estabelecida com a aprovação do parecer n.º 250/10-E,
lavrado nestes autos (fls. 77/87 e 88), e reconheço, inclusive na linha do
decidido pelo Colendo Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça de São
Paulo (Mandado de Segurança n.º 0058947-33.2012.8.26.0000, relator
Desembargador Guerrieri Rezende, julgado em 12.09.2012), que o § 1.º do
artigo 1.º da Lei n.º 5.709/1971 não foi recepcionado pela Constituição
Federal de 1988, de sorte, portanto, a dispensar os tabeliães e os oficiais
de registro de observarem as restrições e as determinações impostas pela Lei
n.º 5.709/1971 e pelo Decreto n.º 74.965/1974, bem como do cadastramento no
Portal do Extrajudicial, em relação às pessoas jurídicas brasileiras cuja
maioria do capital social se concentre em poder de estrangeiros residentes
fora do Brasil ou de pessoas jurídicas com sede no exterior. Sem prejuízo,
oficie-se ao Excelentíssimo Senhor Corregedor Nacional de Justiça, o
eminente Ministro Francisco Falcão, dando-lhe conhecimento da presente
decisão. Publique-se, inclusive o parecer.
São Paulo, 05 de dezembro de 2012.
(a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça.
Confira aqui a íntegra da decisão.
Fonte: DJE (11/12/2012)
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