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19/10/2018

Artigo - Reconhecimento de firma e autenticações de documentos pela administração pública - Por João Pedro Lamana Paiva

1. INTRODUÇÃO
 
Inaugurada nova agenda de desburocratização em 2017 em face da publicação da Lei nº 13.460/17 e do Decreto nº 9.094/17. Agora, em 2018, o Governo Federal reforça tal propósito em face do advento da Lei nº 13.726/18.
 
Como ainda não evoluímos, no Brasil, para a presunção absoluta de boa fé e de confiança - quiçá por termos uma legislação penal desatualizada e pela carência de efetividade de sanção pelos ilícitos contra o patrimônio, a fé pública e a administração pública – acaba-se transferindo o ônus de verificação de autenticidade, que antes era custeado pelo Administrado, para a Administração Pública, uma vez que é ela agora quem aferirá a autenticidade de assinaturas e de documentos.
 
Esta breve exposição não tem o escopo de defender interesse corporativo algum, mas de tentar fazer uma análise concreta a respeito do seu cumprimento. Independentemente dos prós e contras promovidos pelas hodiernas legislações, tratar-se-á de expor objetivamente o modus operandi de sua aplicação na seara notarial e registral.
 
2. APLICABILIDADES DOS RECENTES DIPLOMAS NORMATIVOS (LEI Nº 13.460/17, DO DECRETO Nº 9.094/17 E LEI Nº 13.726/18)
 
À primeira vista, a Lei nº 13.460/17 representaria grande impacto nas atividades notariais e registrais.Dispõe, ela, “sobre a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública”.
 
Por seu turno, o Decreto nº 9.094/17 dispôs “sobre a simplificação do atendimento prestado aos usuários dos serviços públicos, ratifica a dispensa do reconhecimento de firma e da autenticação em documentos produzidos no País e institui a Carta de Serviços ao Usuário.”
 
Agora veio a Lei nº 13.726/18 para racionalizar atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de instituir o Selo de Desburocratização e Simplificação. Ocorre que tal racionalização visa a supressão ou a simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude. Não foi definida, entretanto, a fórmula que deverá nortear a relação entre o custo econômico ou social frente ao risco de fraude, para fins de aplicação do comando normativo pelos destinatários da norma. Será uma análise subjetiva do agente público sopesando cada situação apresentada? Quais as balizas objetivas que nortearão o seu agir? Com que segurança o agente público poderá definir se se aplica ou não a citada legislação ao caso concreto? Nada disso restou esclarecido, demonstrando ou que teremos mais uma lei sem efetividade, ou que precisará ser regulamentada por Decreto para que possa vir a ser aplicada como se espera.
 
Voltando às normas de 2017, necessário enfatizar que o Decreto nº 9.094/17 não regulamentou a Lei nº 13.460/17. Tal Decreto, por ser lançado com espeque no art. 84, caput, inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal, alcança status similar ao de lei federal, integrando o rol dos Decretos Autônomos. Assim, embora refiram-se a temas similares, não guardam vínculo entre si.
 
Como reflexão introdutória, o uso de Decreto Autônomo pela Presidência da República não pode implicar no aumento de despesas para a Administração Pública. Para aumento de despesas exige-se lei (em sentido estrito). Se se passar os atos de reconhecimento de firmas e de autenticações hoje praticados pelos Notários para a Administração Pública não importará, de forma indireta, no incremento de despesas pelo maior volume de material humano para a execução dos serviços e para a qualificação desta mão-de-obra, sem falar na responsabilidade civil aparentemente avocada pela Administração?
 
No cotejo entre a Lei e o Decreto identificam-se três pontos relevantes de distinção. São eles:
 
O primeiro relaciona-se aos destinatários das normas. Enquanto a Lei nº 13.460/17 destina-se à Administração Pública Direta e Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 1º, §1º), o Decreto nº 9.094/17 tem como destinatários tão somente os órgãos e as entidades do Poder Executivo Federal (art. 1º, caput).
 
O segundo ponto de divergência refere-se à sua vigência. O art. 25 da Lei nº 13.460/17 apresentou uma escala de vigência em face da população dos Municípios, ao passo que o Decreto nº 9.094/17, pelo seu art. 24, entrou em vigor na data da sua publicação.
 
E, ainda (terceiro), os casos de dispensa de reconhecimento de firmas e autenticações, que são os que realmente dizem respeito às atividades notarial e registral. De um lado, o art. 5º, IX da Lei nº 13.460/17 explicita: “autenticação de documentos pelo próprio agente público, à vista dos originais apresentados pelo usuário, vedada a exigência de reconhecimento de firma, salvo em caso de dúvida de autenticidade;”.
 
De outro, o art. 9º do Decreto nº 9.094/17 primeiro indica a dispensa de reconhecimento de firma e de autenticação para os documentos expedidos no País e destinados a fazer prova junto a órgãos e entidades do Poder Executivo federal; todavia, no art. 10, §1º explicita que a autenticação poderá ser feita pelo servidor público. Então, a Lei nº 13.460/17 mantém o ato de autenticação e explicita que será o servidor a fazê-lo, enquanto o Decreto nº 9.094/17 o dispensa, mas indica que poderá ser feito pelo servidor. Em que pese o art. 7º, V, da Lei nº 8.935/94, ato de autenticação não é nova atribuição da Administração Pública; já era possível se compreender tal autorização em decorrência dos atributos dos atos administrativos (presunção de legitimidade, legalidade e veracidade; autoexecutoriedade; imperatividade; e, tipicidade).
 
Na mesma toada, o art. 3º da Lei nº 13.726/18 na relação dos órgãos e entidades dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o cidadão, dispensa a exigência o reconhecimento de firma, a autenticação de cópia de documento etc., atribuições estas que ficarão ao encargo do agente administrativo.
 
Hoje, por exemplo, o INSS, sujeito ao Decreto nº 9.094/17, já pode dispensar o reconhecimento de firmas e autenticações se passar a fiscalizar o usuário quando da utilização do serviço público.
 
Secretarias Estaduais ou Municipais também já podem realizar tal aferição? Como elas não estão sujeitas ao Decreto nº 9.094/17, mas à Lei nº 13.460/17, a princípio deveriam observar os prazos em que a lei entrará em vigor, dependendo da população de cada Município.
 
Sobre este aspecto, o art. 25 da Lei nº 13.460/17 estabelece o seguinte:
 
Art. 25.  Esta Lei entra em vigor, a contar da sua publicação, em: 
 
I - trezentos e sessenta dias para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de quinhentos mil habitantes; 
 
II - quinhentos e quarenta dias para os Municípios entre cem mil e quinhentos mil habitantes; e 
 
III - setecentos e vinte dias para os Municípios com menos de cem mil habitantes.
 
Da análise dos prazos previstos constata-se a situação peculiar de se relacionar a entrara em vigor da lei em face da população existente em cada Município... De qualquer modo, impõe-se a sua observância.
 
De qualquer forma, pela amplitude da Lei nº 13.726/18, que tem, friza-se, aplicabilidade imediata pelosPoderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, parece que o prazo do art. 25 da Lei nº 13.460/17 perdeu eficácia, devendo (respondendo a pergunta acima) as Secretarias Estaduais e Municipais passar a cumprir as determinações da lei nova, mas quando alcançarem as balizas objetivas para nortear a relação entre o custo econômico ou social e o risco de fraude, antes ponderada.
 
3. DA PROFILAXIA ALCANÇADA PELOS ATOS NOTARIAIS EXTRAPROTOCOLARES
 
São atos notariais extraprotocolares os reconhecimentos de firmas e as autenticações.
 
Reconhecimento de firmas e autenticações no Brasil são medidas profiláticas, que evitam muita incomodação para o usuário e para o Estado, embora pouco se compreenda a respeito disso. Num primeiro momento pode parecer mera burocracia; todavia, em face das incontáveis falsidades e irregularidades que se tentam praticar diariamente perante a Administração Pública e entre os particulares tais medidas se prestam para prevenir litígios e alcançar segurança jurídica sem a necessidade de processo judicial.
 
Com muita frequência o Estado Brasileiro gasta vultosos recursos para recadastrar beneficiários de programas em face da frequência com que se operam as falsidades. As Juntas Comerciais enfrentaram sérios problemas ao tempo em que não exigiam reconhecimento de firmas. E tantos outros casos podem ser citados como problemáticos em face da flexibilização da exigência de cautelas mínimas como as ora em comento.
 
Com efeito, não são os Tabeliães que procuram os usuários para a prática de tais atos, mas são estes que procuram os Notários ou para atender interesse pessoal, ou para satisfazer exigência legal, ou no interesse privado ou de repartição pública.
 
Incontroverso que a Administração Pública direta e indireta se adaptará ao texto legal e regrará sua forma de atuação com fundamento nesta nova realidade, que pode ser saudável. Deverá inclusive preparar e treinar servidores para a prática de atos de autenticação de documentos mediante a realização de cursos de grafodocumentoscopia, inclusive porque passará a ter responsabilidade por tais atos. Quando o custo com tal ato antes cabia ao usuário, ficando a responsabilidade civil com o Notário que realizava a autenticação, agora o custo decorrente das falsidades será compartilhado por todos, para sustentar a nova atribuição e a responsabilidade estatal.
 
4. INCIDÊNCIA NOS SERVIÇOS NOTARIAIS E REGISTRAIS
 
Os serviços notariais e registrais, para agirem, também precisarão observar a Lei nº 13.460/17 e a Lei nº 13.726/18? São também destinatários dos novos comandos? Poderão ser caracterizados como integrantes da Administração Pública indireta, em face do exercício via delegação (Lei nº 13.460/17), ou dos Poderes constituídos (Leinº 13.726/18? Pela forma como atuam, via delegação, suas rotinas igualmente serão afetadas e alteradas?
 
A análise da natureza jurídica dos serviços notariais e registrais pela jurisprudência é extremamente vacilante: Ora se verifica a presença do caráter empresarial (incidência tributária do Imposto Sobre Serviço e inexistência de aposentadoria compulsória), ora entende-se como serviço público latu sensu(teto remuneratório para os interinos, acesso à função por concurso público, serviço remunerado por emolumentos etc.). Nunca houve uma definição precisa sobre a aplicação do art. 236 da Constituição Federal (CF), quando explicita que “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. Ainda não se sabe, com precisão, qual a parte pública e qual a privada decorrente da prestação dos aludidos serviços.
 
De qualquer modo, quanto à aplicação da Lei nº 13.460/17 e da Lei nº 13.726/18, acredita-se que o Poder Judiciário, a quem compete a fiscalização e orientação dos serviços notariais e registrais, irá entender que compreendem-se, no caso, dentro da Administração Pública prestada de forma indireta, por delegação. Da análise da Lei nº 13.460/17, o §3º do art. 1º justifica tal consideração e o art. 2º, II e III parecem incluir tacitamente os serviços delegados do art. 236 da CF.
 
Em que pese tal consideração, conforme §2º do art. 1º da Lei nº 13.460/17, sua aplicação não afasta a necessidade de cumprimento do disposto em normas específicas (inciso I do §2º do art. 1º da Lei nº 13.460/17). Igualmente, o art. 9º do Decreto nº 9.094/17 dá respaldo às leis que explicitam a obrigatoriedade de atos de reconhecimento de firma e de autenticações.
 
Com fundamento em tais dispositivos legais, salvo melhor juízo, deverão continuar sendo exigidos reconhecimentos de firmas para (i) se registrar uma procuração no Registro de Títulos e Documentos, como prevê o art. 158 da Lei de Registros Públicos (LRP); (ii) recepcionar títulos particulares no Registro de Imóveis (art. 221, II c/c art. 250, II, ambos da LRP); e, (iii) recepção de requerimentos em geral (art. 246, §1º da LRP).
 
Necessário refletir pela manutenção, ou não, de tal exigência para os casos de aplicação de medidas de desjudicialização, como ocorre para a retificação de registro imobiliário (art. 213 da LRP) e para a usucapião extrajudicial (art. 216-A). Hoje ditas regra mencionam apenas a necessidade de anuência dos lindeiros e titulares de direitos reais, por medida de segurança na aplicação destes institutos impõe-se que as firmas estejam reconhecias.
 
Será que o Brasil já evoluiu a ponto de dispensar tal formalidade nestes casos específicos? A presunção de boa-fé do usuário prevista no art. 5º, II, da Lei nº 13.460/17 e no art. 1º, I do Decreto nº 9.094/17 não sofrerá nenhum controle ou modulação, inclusive nos casos complexos que se referem a definição do direito de propriedade?
 
É preciso analisar esta questão com a moderação e o equilíbrio esperados. O Estado Brasileiro está devidamente aparelhado para coibir e reprimir as inúmeras falsidades que ocorrerão a partir de tal “flexibilização”? A quem interessa esta abertura? Não serão raros os casos de responsabilização da Administração Pública pelos atos praticados por seus servidores. Pelas falsidades praticadas por alguns seguidamente milhões que recebem algum benefício previdenciário precisam fazer seu recadastramento...
 
Por certo, não se está aqui defendendo interesse da classe notarial, muito pelo contrário, defende-se o claro interesse da sociedade em geral, que conta com o menor custo de seguro para estar protegida através do instituto do reconhecimento de firma, ou mesmo com gratuidade na obtenção da eficaz informação jurídica no caso concreto. A título de exemplo podemos afirmar, em tom de pergunta, quantos contratos ilegais deixaram de ser celebrados quando, ao dirigirem-se ao tabelionato para reconhecimento das firmas, as partes foram alertadas (gratuitamente) da ilegalidade daquele pacto; da impossibilidade jurídica daquele objeto; da inviabilidade jurídica daquela forma ou ainda da incapacidade jurídica daqueles agentes?
 
Ademais, veja que a diretriz do inciso XI, trata da “eliminação de formalidades e de exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco envolvido” (grifos nossos). Por isso, sustenta a necessidade de se manter o reconhecimento de firma nos casos de retificação de registro imobiliário e de usucapião extrajudicial porque o custo econômico de tal medida para a sociedade será infinitamente menor do que na resolução de litígios gerados se tal formalidade for dispensada. Quem está regularizando seu imóvel sabe que terá certos custos para enfrentar, proporcional à valorização alcançada em face da regularização da propriedade. Logo, melhor que ao interessado caiba este custo do que repassá-lo à sociedade como um todo pelos inúmeros problemas que irão surgir pela generalizada flexibilização.
 
Assim, salvo melhor juízo, a presunção de boa-fé do usuário deve ser analisada em compasso com outra diretriz do art. 5º, qual seja, a do inciso IV, que explicita a adequação entre meios e fins. Ora, é razoável e proporcional manter o reconhecimento de firma para determinados casos, em especiais os que encetam, por exemplo, as retificações imobiliárias, a usucapião extrajudicial e as transações econômicas como a transferência de veículos.
 
Trazendo outro caso de exigência normativa de reconhecimento de firmas e de autenticação é possível citar o art. 10 e parágrafos do Provimento nº 58 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina procedimentos das autoridades competentes para a aposição de apostila (Apostila de Haia). Por tal regulamento foram previstos mecanismos de proteção da confiança antes de se realizar o apostilamento.
 
Mas alguma aplicabilidade imediata das novéis legislações deve ser alcançada. Quanto à possibilidade de (i) requerimentos serem assinados perante prepostos de Notários e Registradores (ex.: requerimento para averbação de construção no Registro de Imóveis) e de (ii) se proceder a conferência de originais com cópias a eles apresentadas (ex.: cotejo entre a certidão de casamento e sua cópia no Registro de Imóveis para que seja deferida uma averbação de alteração de estado civil), são medidas que se impõe desde já.
 
5. DA NECESSÁRIA REGULAMENTAÇÃO PELO CNJ OU CORREGEDORIAS
 
Com a maior brevidade esperada o Conselho Nacional de Justiça ou as Corregedorias-Gerais de Justiça precisarão adequar suas normas administrativas as citadas legislações para que com segurança os Notários e Registradores possam atuar. Curial que se esclareça a amplitude dos seus efeitos.
 
Em face das novéis legislações será preciso que se defina quando manter ou não as exigências (legais) de reconhecimento de firmas e de autenticações para a prática de determinados atos perante a Administração Pública em geral  (direta ou indireta).
 
Por certo que atos de bom senso de cada Notário e cada Registrador, no caso concreto, jamais serão automaticamente substituídos por frias letras de regras gerais; porém, sem as frias letras das regras gerais, quais serão as bases para o aferimento do bom senso? 
 
6. CONCLUSÃO
 
As mazelas enfrentadas pelos usuários de serviços públicos no Brasil não decorrem dos serviços notariais e registais, os quais servem de exemplo de atuação do serviço público e se encontram em primeiro lugar em índices de satisfação.
 
Espera-se que os efeitos principais decorrentes da Lei nº 13.460/17, do Decreto nº 9.094/17 e agora da Lei nº 13.726/18 sejam sentidos pelos usuários nas áreas de saúde, educação e segurança pública, cujos índices estão muito aquém da contribuição custeada pela sociedade em geral e sem a devida contraprestação por parte do Estado.
 
Importante que o foco da Administração Pública mire o alvo correto, alterando sim o que precisa ser alterado, mas preservando o que ainda funciona muito bem no nosso País, que são os serviços notariais e registrais.
 
De qualquer modo, sempre há espaço para se oportunizar melhorias ao cidadão, desburocratizando aquilo que for possível, levando-se em conta, como bem indicado na norma, o fator custo versus risco.
 
Por fim, espera-se que não tenhamos mais normas escritas sem a observância pelo seu destinatário final, no caso, o próprio Estado Brasileiro, mormente porque a desburocratização não é assunto novo na Administração Pública nacional.
 
Porto Alegre – RS, 18 de outubro de 2018.
 
COLÉGIO REGISTRAL DO RIO GRANDE DO SUL
João Pedro Lamana Paiva
Presidente
 
Fonte: Colégio Registral do Rio Grande do Sul

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