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01/08/2017

“O discurso da burocracia desnecessária poderá revelar quão frágeis ainda somos”

Defensor Público em São Paulo, Luiz Rascovski fala sobre a importância do reconhecimento de firma e de como as juntas comerciais de todo o Brasil estão utilizando este instrumento para prevenir fraudes em constituições de empresas

Em 2015, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo atendeu mais de 700 casos de pessoas que foram inseridas como sócios “laranjas” em empresas. Em 2010, o defensor público Luiz Rascoviski encaminhou a deputados federais e senadores sugestão de altera- ção dos artigos 53 e 63 da Lei nº 8.934/94, que dispõe sobre o registro público de empresas mercantis.

A lei não prevê a necessidade de escritura pública, nem de reconhecimento de firma para alterações no contrato social de empresas, o que, segundo o defensor, contribui com a ocorrência de fraudes contra pessoas que tiveram documentos perdidos, furtados ou roubados.

CcV - Após o envio da sua sugestão de alteração da Lei 8.934/94, em 2010, devido à recorrente inserção indevida de sócios laranjas, depois de terem seus documentos perdidos ou roubados, em empresas fantasmas, o que mudou?

Luiz Rascovski - Infelizmente não mudou muita coisa. Os casos de fraudes continuam a chegar com bastante frequência. Apesar de que pouca coisa tenha mudado após a apresenta- ção de minha proposta de alteração legislativa, nem todo trabalho foi em vão. Depois que estivemos em Brasília, apresentando a situa- ção a alguns deputados, levando dados estatísticos dos atendimentos realizados na Defensoria Pública e mostrando a eles a extensão do problema, houve avanço, ainda que tímido. O deputado Carlos Sampaio protocolou o Projeto de Lei (P.L.) nº 3.492, de 2012, justamente para alterar a Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, para tornar mais rigorosos os atos empresariais levados a registro nas Juntas Comerciais. Atualmente o PL está pendente de apreciação conclusiva pelas comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio e Constituição e Justiça e da Cidadania.

CcV - A que se devem essas fraudes?

Luiz Rascovski - É uma verdadeira máfia e muita gente ganha rios de dinheiro com esta prática ilegal, que invariavelmente prejudica um terceiro de boa fé, que em algum momento pagará pela fraude, se não literalmente, mas com muita dor de cabeça. De 2010 para cá assisti muitas reportagens e vi muitos noticiários, alguns dos quais deflagrados depois que minha sugestão legislativa foi divulgada. Tais reportagens divulgavam com espanto a facilidade de se criar ou usar documento de terceiros para diversos fins não permitidos. Vi, por exemplo, a facilidade que uma pessoa pode expedir diversos RGs, com números diversos, em todos os Estados da Federação com numeração variada. Isto porque, o RG, diferentemente do CPF não é um cadastro nacional e unificado. Assim, uma mesma pessoa pode ter, se assim quiser, 27 RGs, um para cada Estado da Federação. Numa destas reportagens mencionadas um repórter fez justamente essa comprovação e, facilmente, expediu 27 RGs diversos. Isso demonstra claramente uma falha do sistema. Até porque em diversos Estados da Federação temos homônimos, o que pode gerar confusão, mesmo quando a pessoa não seja fraudadora ou não esteja de má-fé.

CcV - Quais medidas devem ser adotadas para que as fraudes sejam evitadas?

Luiz Rascovski - Mais do que combater as consequências, precisamos combater as causas desta situação. A consequência seria a utiliza- ção do documento de maneira indevida, a causa seria impedir a criação, expedição, venda, comercialização destes documentos falsos e até mesmo combater a conivência de órgãos públicos na utilização de tais documentos, por meio de atuação de agentes corruptos. Desde 2010 tenho a percepção da necessidade de medidas preventivas, como a que sugeri naquela época, mas que deverão ser adotadas conjuntamente com uma série de outras medidas, para combater causa e efeito deste grave problema de utilização indevida de documentos. Devemos adotar sim medidas como aquela que propus na sugestão de alteração legislativa, cuja atuação era no sentido de prevenir as fraudes, por meio de reconhecimento de firma. Justamente para se evitar o uso de documentos falsos e/ou de terceiras pessoas por fraudadores, dificultando o modus operandi destas quadrilhas. Todavia, atingir a causa, a origem geradora de toda esta situação de insegurança, pelo uso indevido de documentos, pode ser mais eficiente, do que empenhar todos os esforços apenas na preven- ção. A adoção de mecanismos de controle, para aqueles que – infelizmente - já tiveram seus documentos extraviados, por qualquer meio que seja, deve estar na mente dos governantes. Foi pensando justamente nisso que propus aquele projeto de lei. Contudo, não bastará focar exclusivamente em medidas preventivas, se não houver, paralelamente, medidas repressivas, para impedir a produção de documentos falsos, desmantelando as organizações criminosas que sabidamente lucram exacerbadamente com o comércio ilegal de venda de documentos. 

CcV - Em alguns Estados as juntas comerciais adotaram o reconhecimento de firma com o intuito de mitigar possíveis fraudes na abertura de empresas ou alterações em quadros societários. Por quê?

Luiz Rascovski - Em muitos Estados da Federação, como Mato Grosso, Tocantins, Paraná, Pernambuco e Rio de Janeiro, as Juntas Comerciais, por meio de Resolução Plenária, instituíram medidas mais rigorosas, como a necessidade de reconhecimento de firma dos signatários para os atos de constituição, alteração contratual e distrato social das sociedades empresárias e de seus empresários individuais e administradores. O fato se deveu por dois motivos: o primeiro é justamente a demora na aprovação de uma nova legislação pelo Congresso Nacional. O segundo motivo certamente se deu pelo fato de as Juntas passarem a figurar no polo passivo nas centenas de ações judiciais ajuizadas pelos prejudicados, inclusive perseguindo condenações em danos morais, o que acabou pressionando as Juntas Comerciais a adotarem novas medidas.

CcV - Qual a sua opinião sobre essas iniciativas?

Luiz Rascovski - Em um país com tanta carga tributária, taxas e carimbos tidos como desnecessários, a suposta implementação de obrigatoriedade de reconhecimento de firma para alteração ou criação de sociedades empresárias soa, à primeira vista, como retrocesso. Contudo, nossa sociedade ainda não está amadurecida para a total exclusão da burocracia. Certamente as organizações criminosas se aproveitarão desse relaxamento, notando rapidamente uma diminuição do controle em benefício das práticas criminosas, que sofrerão menos resistência. No Rio de Janeiro, Estado que adotou, por meio de Resolução a obrigatoriedade do reconhecimento de firma em face de contínuas e rotineiras tentativas de falsificação de assinatura em documentos societários levados a registro, as fraudes foram reduzidas em mais de 80%. No caso de abertura de empresas fantasmas, inserção de sócios laranjas, tudo por meio de utilização indevida de documentos falsos ou extraviados, devemos cotejar a segurança jurídica. Obviamente que ninguém pretende burocratizar serviços ou aumentar custos desnecessários. Todavia, para estes casos específicos, em que vidas de cidadão de bem são arruinadas, com comprometimento do nome e do patrimônio daquele que tem o azar de ser vítima dos fraudadores, a adoção de mecanismos de controle tem se revelado eficiente, não podendo ser rotulada, nestas situações de burocracia desnecessária. Talvez burocracia sim, mas que está a serviço da segurança jurídica, repita-se, nestes casos que temos enfrentado.

CcV - Há o interesse das juntas comerciais, como no Paraná, por exemplo, de implementar a certificação digital para dar mais segurança ao sistema. Por que o reconhecimento de firma possui tanta resistência de adoção?

Luiz Rascovski - Certamente a modernidade, atrelada ao progresso digital, poderá nos trazer soluções mais inteligentes e mais viáveis até mesmo do ponto de vista financeiro. A assinatura eletrônica pode ser um mecanismo de controle de fraude, porque identifica aquele que praticou o ato e de que local (computador) o ato teria sido praticado, já que a parte precisa se identificar em um sistema por meio de senha. Todavia, não se pode esquecer que com a era da informatização não podemos cometer o erro de informatizar a burocracia, quando, na verdade, esta deve ser usada em prol da simplificação de processos, sem prejudicar a garantia jurídica. A implementação dos certificados digitais poderia ser uma das soluções a ser adotada. Contudo, trata-se de um processo lento, que demanda infraestrutura e investimento. De nada adianta dispensar reconhecimento de firma, se não houver meios para o cidadão ter acesso ao certificado digital. Assim, ele poderá ser vítima duas vezes: tanto pela vulnerabilidade a que estará submetido, quanto pela falta de recurso para bem acessar e garantir sua segurança. Penso que a modernização trará boas soluções para avançarmos nesta questão. Não sou a favor da desnecessária burocratização dos serviços e sistemas. Qualquer operador do Direito tem conhecimento das mazelas da excessiva burocracia e de seus efeitos maléficos. Todavia, não podemos nos enganar, imaginando que a simplificação de processos, desacompanhada de outros mecanismos de controle, nos garantirá a segurança que pretendemos, para viver sem o assombro de acordarmos vítimas de fraude. Nesse momento, o discurso da burocracia desnecessária, poderá nos revelar quão frágeis ainda somos diante de uma cultura com mentalidade mal-intencionada.

Fonte: Revista Cartórios Com Você


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