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11/04/2017

Artigo - O operador nacional do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico. Principais aspectos do art. 54 da MP n. 759/2016 – Por Josué Modesto Passos

Sumário: 1. Escopo deste artigo. 2. A MP n. 759/2016, art. 54. 3. A inconstitucionalidade do art. 54. 4. O “âmbito nacional” do SREI. 5.A naturezado ONR. 6. Poderes normativos? 7.O ONR e o Poder Público. 8.A guisa de conclusão.

            1. A Medida Provisória n. 759, de 22 de dezembro de 2016, teve por fins principais dar nova disciplina à reforma agrária (arts. 1º-7º), à regularização fundiária urbana (arts. 8º-67) e à avaliação e alienação de imóveis da União (arts. 68-72).
Entre essas novas regras inseriu-se uma – o art. 54 – que, a pretexto de mandar que os atos de regularização fundiária se façam preferencialmente por meios eletrônicos (caput), previu a criação de uma nova entidade, o Operador Nacional do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico em âmbito nacional, ou ONR (§§ 1º-7º).

O escopo deste artigo é expor os principais aspectos desse art. 54 e discutir as suas consequências para o registro de imóveis do Brasil.

           2. Segundo o art. 54 da MP n. 759/2016:

(a) no âmbito nacional, o sistema de registro de imóveis eletrônico (SREI) será “implementado” e “operado” pelo ONR (§ 1º);
(b) todas as unidades do serviço de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal integram o SREI e são vinculadas ao ONR (§ 5º);
(c) o ONR será uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos (§ 2º);
(d) o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) elaborará o estatuto e constituirá o ONR (§ 3º);
(e) o estatuto será aprovado pela Corregedoria Nacional de Justiça (§ 3º), a qual, depois, zelará por seu cumprimento, terá o papel de agente regulador (§ 4º) e poderá dispor sobre outras atribuições a ser exercidas pela nova entidade (§ 7º).
Além disso, o § 6º do art. 54 determina que, sem ônus, os serviços do SREI serão postos à disposição do Poder Executivo federal, do Ministério Público e dos entes públicos previstos nos regimentos de custas e emolumentos dos Estados e do Distrito Federal, e dos órgãos encarregados de investigações criminais, fiscalização tributária e recuperação de ativos.
  1. A primeira pergunta que se põe é: são constitucionais as regras que organizam o ONR?
A resposta tem de ser negativa, e isso por duas razões fundamentais.

De um lado, a estrutura que o art. 236 da Constituição federal deu às notas e aos registros não prevê o “âmbito nacional” referido no § 1º do art. 54. Os tabeliães e registradores recebem suas delegações e exercem suas atividades, eletrônicas inclusive, na esfera estadual ou distrital: ressalvadas as atribuições correcionais da Corregedoria Nacional de Justiça (CF/1988, art. 103-B, § 4º, III), é somente aos Estados e ao Distrito Federal que compete organizar esses serviços extrajudiciais, no âmbito dos respectivos Poderes Judiciários (Constituição, arts. 25, § 1º, 32, § 1º, 109, e 125, caput). A própria Corregedoria Nacional, note-se, tem poder censório sobre os tabelionatos e os ofícios de registro que existam nas unidades federadas, e não sobre serviço extrajudicial federal que, inexistente até agora, a MP n. 759/2016 quer enxertar na estrutura atual, criando com isso um “âmbito nacional” do registro de imóveis.

De outro lado, a criação de um ente nacional de registro de imóveis, diretamente pela lei, agride a autonomia de gestão própria dos registradores (CF/1988, art. 236, caput; Lei n. 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 28). Uma coisa é permitir que os oficiais, eles próprios, organizem os seus serviços, eletrônicos inclusive (Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009, art. 37), e constituam as corporações mais adequadas para tanto (Provimento n. 47, de 18 de junho de 2015, art. 3º, § 1º, da Corregedoria Nacional de Justiça). Outra, muito diferente – e inconstitucional – é determinar-se (de cima para baixo) que seja criado um corpo estranho, como o ONR, que tome para si a governança e o gerenciamento da atividade, o que só aos registradores compete.

Nesse sentido, refere o desembargador José Renato NALINI (A inconstitucionalidade do §1º do Art.54 da MP 759/16, disponível na página http://iregistradores.org.br):

A fiscalização dos serviços é entregue ao Judiciário dos Estados-membros e tudo funciona a contento. São setores em que os princípios incidentes sobre a Administração Pública no artigo 37 da Carta Magna encontram guarida e efetividade. E a outorga da delegação por seleção pública de mérito assegura não apenas a continuidade dos serviços, mas contínuo e crescente aprimoramento. Imiscuir-se o Executivo ou o Legislador numa área interdita, pois o constituinte a entregou ao Judiciário, afronta a vontade fundante. A proposta é inconstitucional e não passará pelo controle da própria Comissão de Constituição e Justiça das Casas representantes do Bicameralismo Pátrio. Mas além de incompatível com a Constituição, a providência é inoportuna e inconveniente. A República do Brasil é Federativa e os Estados-Membros têm autonomia para administrar correcionalmente seus serviços notariais e de registro. Muito antes de o Conselho Nacional de Justiça editar o Provimento CNJ 47/2015, São Paulo já contava com serviço eficiente de registro imobiliário eletrônico e se antecedera à previsão normativa. Não se mostra conveniente a criação de mais um órgão, que a Medida Provisória 759/2016 chama de “Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico – SREI”, se ele já existe sob a forma de Central de Serviços Eletrônicos Compartilhados. É mais um passo eivado de cultura burocrática e centralizadora, com nítida tendência de supressão de parcela considerável da competência do Poder Judiciário, já reservada na Constituição pela expressa disposição do artigo 236 e de indesejável centralização, num País de tanta heterogeneidade e singularidades regionais.”
  1. Suponha-se por epítrope, entretanto, que o art. 54 seja compatível com a Constituição, e que realmente exista um “âmbito nacional” do SREI que possa ser “implementado” e “operado” pelo ONR.
Nessa hipótese, qual seria tal “âmbito nacional”? Em que poderia consistir a “implementação” e a “operação” desse âmbito?

Considerando que, como dito, os serviços extrajudiciais são todos prestados na esfera da Justiça dos Estados e do Distrito Federal, e que estaduais e distrital são também as relativas atividades correcionais (com a atuação supletiva da Corregedoria Nacional, que desce a fiscalizar o que se faz embaixo, no campo regional), fica claro que o “âmbito nacional” do ONR é um restante.

Com efeito, a nova entidade, se vier a ser criada, só implementará as suas atividades e operará no espaço que lhe restar, depois de descontados os serviços dos oficiais e das centrais de serviços eletrônicos compartilhados criadas segundo o Prov. n. 47/2015. Vale dizer: o ONR, respeitando a independência dos registradores e a autonomia das centrais estaduais – os únicos que podem prestar serviços eletrônicos (Lei – só poderá agir para facilitar o acesso às atividades prestadas nos Estados e no Distrito Federal, e nada mais que isso.
Infelizmente, a proposta de estatuto social enviada à Corregedoria Nacional de Justiça extrapola em muito esse limite estreito, e pretende conceder ao ONR não apenas a “implementação” e a “operação” desse “âmbito nacional”, estritamente concebido, mas o controle sobre todo o conjunto da atividade registrária. Assim é que no projeto se menciona, ao lado do SREI, um pretenso “Sistema Nacional de Registro de Imóveis” (art. 4º, § 2º, e art. 5º, VIII). Com isso, quer-se atrair para o âmbito da nova entidade todo o controle do serviço registral, dando ao ONR, por exemplo, atribuições para “informatizar procedimentos registrais internos e de gestão das serventias” (art. 4º, § 2º, II), para “prover um barramento nacional de integraçãoe interoperabilidade de suas bases de dados” (art. 5º, § 4º, I), para “manter infraestrutura para o armazenamento seguro de dados, imagens, cópias de segurança (backups) e virtualização de servidores” (art. 5º, § 4º, III), e para “desenvolver e disponibilizar aos registradores sistemas e ferramentas eletrônicas… para gestão administrativa da serventia e realização de atos registrais” (art. 5º, § 4º, IV).

A par isso, a proposta estatutária tem por fim extinguir as centrais estaduais de serviços eletrônicos, pois ali se preveem a “operação centralizada do SREI… com acesso em um único ponto na Internet” (art. 5º, III) e a “interligação” e “execução dos serviços… diretamente na unidade de registro de imóveis com a infraestrutura do ONR ou por intermédio das centrais estaduais de serviços eletrônicos compartilhados” (art. 5º, § 5º).
  1. O § 5º do art. 54, por sua vez, afirma que todas as “unidades de serviço de registro de imóveis” (leia-se, todos os oficiais de Registro de Imóveis) integram o SREI e estão vinculadas ao ONR, o qual tem de ser organizado como pessoa jurídica de direito privado (§ 2º).
Na verdade, mais que por força desse § 2º, a organização do ONR como pessoa jurídica de direito privado impõe-se pelo fato de que, na atividade registral imobiliária, o protagonismo é sempre dos oficiais. As centrais de serviços eletrônicos compartilhados, com efeito, não passam de instrumentos dos registradores para a prestação de suas atividades digitais. O próprio Poder Judiciário só pode agir de modo subsidiário e (passe o truísmo) apenas na fiscalização dos serviços (CF/1988, art. 236, § 1º).

Ora, a única forma de respeitar o protagonismo dos oficiais estaria em fazer com que, dentre as figuras previstas no art. 44 do Código Civil, o ONR realmente se conformasse à que mais respeitasse o direito dos registradores à vez, à voz e ao voto: concretamente, o ONR teria de tomar a forma de associação civil, com o que se garantiria o respeito aos direitos fundamentais de participação e condução da vida da nova entidade (cf., em tal sentido, o Código Civil, arts. 54-59).

Pondo ao largo, entretanto, o § 2º do art. 54, a minuta de estatuto apresentada à Corregedoria Nacional de Justiça quer emprestar ao ONR o caráter de entidade “paraestatal” em que os oficiais não participarão diretamente, mas apenas por meio de suas entidades representativas (arts. 1º; 11, caput;16, §§ 1º e 8º; 20, caput; e 51). Mais que isso, os oficiais não têm nenhum controle do novo ente, porque o Presidente do IRIB será o presidente “nato” do Conselho Deliberativo e do Conselho de Administração (art. 16, § 2º) e nomeará o Presidente do Conselho Fiscal (art. 16, § 4º); os demais membros do Conselho Deliberativo (nas palavras do estatuto, o “órgão colegiado de deliberação superior do ONR”) serão escolhidos dentre os integrantes do Conselho Deliberativo do próprio IRIB (art. 18, caput); a Diretoria Executiva será eleita dentre as pessoas indicadas pelo Presidente do IRIB (art. 19, II, e art. 33, caput); os membros do Conselho Fiscal serão designados pelo Presidente do IRIB (art. 25, I e II, e §§ 1º-2º); e o Presidente do IRIB indicará todos os nomes que possam ser escolhidos para compor Comitê de Normas Técnicas (art. 38, caput).

Plus ultra: a proposta estatutária atribui ao IRIB dez por cento de todas as receitas da nova pessoa jurídica (art. 11, par. único), “a título de taxa de administração superior”, o que, talvez, pareça ferir a probidade, visto que a MP n. 759/2016 jamais determinou que tal administração devesse ou pudesse ser cometida, com exclusividade, àquele Instituto.

6. Seja qual for a configuração que per fas et per nefas se queira dar à nova entidade, algo é certo, entretanto: o ONR e seus órgãos não têm e não podem ter poderes normativos.

Em primeiro lugar, a fiscalização dos atos do ONR e a regulação de suas atividades estão na alçada da Corregedoria Nacional de Justiça (art. 54, §§ 3º, 4º e 7º). Isso exclui, desde logo, a existência de qualquer poder normativo em mãos do próprio ONR.

Em segundo lugar, não fosse a vedação legal expressa, é ainda claro que nenhum ato legislativo pode conceder a ninguém poderes regulatórios que por expressa determinação constitucional cabem privativa e exclusivamente ao Poder Judiciário (arts. 236, § 1º, e 103-B, § 4º, III, da Constituição federal).

Contudo, afrontando expressamente o disposto na Lei 8.935/1994, art. 30, XIV (o qual, por sua vez, não é mais que mera explicitação das regras constitucionais), o esboço de estatuto determina que “instruções técnicas padrão” baixadas por um Comitê de Normas Técnicas “serão obrigatórias e aplicáveis às unidades de registro de imóveis vinculadas ao ONR” (art. 37) sem que seja necessária aprovação da Corregedoria Nacional de Justiça, a qual somente terá o poder de suspendê-las (art. 41). Não se vê como seria possível ter excluído, com maior clareza, a regulação que a própria MP n. 759/2016, art. 54, § 4º, atribuiu ao Poder Judiciário, mediante a Corregedoria Nacional de Justiça.
  1. Por fim, cabe mencionar que MP n. 759/2016 ampliou o rol de entidades públicas que sem ônus poderão ter à sua disposição os serviços eletrônicos do registro de imóveis (comparem-se, e. g., a lista do caput do art. 37 da Lei 11.977/2009 e o rol do § 6º do art. 54). Isso obviamente não significa que esses serviços não mais possam ser prestados pelos oficiais ou pelas centrais de serviços eletrônicos compartilhados, ou que o ONR possa absorver tais atividades. O que está dito aí é apenas que é intenção do Executivo federal ver essas informações fornecidas, gratuita e diretamente, a um número maior de órgãos públicos. Mais que isso não disse a lei, et in claris cessat interpretatio.
  1. Concluindo: em decorrência da organização registral criada ainda no Império e, depois, também por força do sistema federativo vigente desde 1889, o registro de imóveis escapa à centralização que agora lhe pretendem impor, já por meio da MP n. 759/2016, já por meio da entidade que essa nova legislação previu. Oxalá melhores luzes surjam sobre o problema, de cuja boa solução tanto dependem, no Brasil, a atividade registral, o futuro da propriedade privada e o destino das liberdades concretas de todos.
 ​Josué Modesto Passos é juiz de Direito de São Paulo e especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário
Fonte: iRegistradores

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