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19/08/2015

Artigo: O fundamental papel do notário no reconhecimento das “Novas” Famílias - José Flávio Bueno Fischer

CNPJ: 20.990.495/0001-50 - inscrição Municipal: 323674/001-0 - Inscr Estadual: ISENTO


A evolução célere dos relacionamentos familiares no mundo contemporâneo requer a constante transformação do ordenamento jurídico, a fim de que ele se coadune com a realidade social de uma determinada época. Assim, não há um conceito de família predeterminado aplicável a todas as épocas e regiões, ele altera-se com o passar dos anos, até mesmo porque, muito antes de ser definido em lei, ele é definido pelo contexto social em que está inserido. 

No Brasil, a pluralização das relações familiares exigiu um redimensionamento no conceito de família, afastando o casamento como marco único de sua existência. A busca pela felicidade levou ao desprendimento das amarras formais e ao surgimento de novas famílias, que floresceram baseadas no afeto.

Inicialmente, a família era constituída unicamente pelo matrimônio. O Código Civil anterior, de 1916, em sua versão original, “(...) trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações”.[1] 

Neste cenário, a Constituição de 1934, considerada a primeira Constituição a se preocupar em delinear a família em seu contexto[2], determinava a indissolubilidade do casamento, ressalvados somente os casos de anulação e desquite. E tamanha era a relevância social e moral conferida ao casamento na época, que as Constituições posteriores, de 1937, de 1946 e de 1967, mantiveram sua indissolubilidade. Somente com o advento da Lei do Divórcio, de 1977, foi possível a extinção do vínculo matrimonial, ”(...) eliminando a ideia da família como instituição sacralizada”.[3] 

Entretanto, o grande marco de inovação no direito de família no Brasil não foi a Lei de 1977 e, sim, a Constituição Federal de 1988, que “(...) num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.[4] Além de instaurar a igualdade entre homem e mulher, a Carta Magna admitiu a existência de outras espécies de família, reconhecendo a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental[5]. Além disso, estabeleceu a igualdade entre os filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção. 

Ou seja, a Carta Constitucional trouxe à sua seara outros arranjos familiares que não somente aquele oriundo do casamento, “(...) e o fez erigindo o afeto como um dos princípios constitucionais implícitos, na medida em que aceita, reconhece, alberga, ampara e subsidia relações afetivas distintas do casamento”.[6] 

Posteriormente, em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o atual Código Civil Brasileiro, publicado em 11 de janeiro de 2002. O projeto original data de 1975 e tramitou no Congresso Nacional antes mesmo da própria Constituição Federal de 1988. Por isso mesmo, o projeto original teve que sofrer modificações profundas diante das diretrizes da nova Constituição, e a despeito das inúmeras emendas e remendos, o texto não tem a clareza e a atualidade necessárias à sociedade dos dias de hoje.[7] 

Assim, apesar de incorporar boa parte das mudanças legislativas que haviam ocorrido por meio da legislação esparsa e agregar orientações pacificadas pela jurisprudência, abolindo expressões e conceitos discriminatórios, como referências desigualitárias entre homens e mulheres, adjetivação da filiação, entre outros, o Código se furtou a promover alguns avanços importantes, a “(...) operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde sempre, embora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional”[8], tais quais as relações entre pessoas do mesmo sexo, as denominadas uniões homoafetivas. 

O Código Civil de 2002 disciplinou exaustivamente o casamento, tratou da união estável, mas nada disse acerca de outras construções familiares, tais quais as uniões entre pessoas do mesmo sexo. É como diz aquela máxima: os movimentos sociais são lebres e o direito é tartaruga. Construções familiares tais quais as uniões homoafetivas existem desde sempre e, mesmo assim, o legislador se omitiu a normatizá-las.
 Felizmente, os notários brasileiros, ao lado do Poder Judiciário, têm andado na contramão dos legisladores. Há muito, as grandes inovações operadas no direito de família brasileiro têm sido trazidas por brilhantes juízes e tabeliães. Assim, a despeito da lacuna legal, as mais diversas formas de constituição de família estão recebendo proteção jurídica, com base nos mais preciosos princípios constitucionais: o da dignidade da pessoa humana e o da igualdade de direitos. 

Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a liberdade de viver suas relações de afeto de acordo com suas convicções íntimas, a liberdade de escolher com quem quer partilhar sua vida, sem ter que estar preso a dogmas sociais e religiosos. Diante disso, é possível concluir que ao conferir supremacia ao princípio da dignidade da pessoa humana, elegendo-o como um dos pilares da República (artigo 1º, inciso III)[9], a Constituição Federal brasileira passou a dar mais importância ao amor, aos laços fraternos, à solidariedade e à felicidade, em detrimento da antiga visão patrimonialista de nossa legislação anterior, em que a entidade familiar era voltada exclusivamente para a transmissão patrimonial e para a procriação, mesmo se isso importasse no prejuízo da realização pessoal de cada um. 

Ou seja, “o texto constitucional consagrou expressamente a mudança do conceito de família, tendo em vista ter considerado o amor como o elemento central na sua formação”[10]. Agora, “a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar”.[11] Assim, o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da afetividade, da pluralidade e da felicidade, “(...) abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação”.[12] 

Nesta linha, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo[13] como entidade familiar, conferindo-a iguais direitos e obrigações das uniões heteroafetivas. 

A Suprema Corte brasileira, neste julgamento histórico, reconheceu o afeto enquanto princípio constitucional implícito[14], chancelando a postura de vanguarda dos notários de todo Brasil, que muitos antes disso já lavravam em suas notas escrituras públicas de união entre pessoas do mesmo sexo. Para se ter uma ideia, no Tabelionato em que sou titular, a primeira escritura de declaração em que duas mulheres manifestaram conviver juntas e compartilhar seu patrimônio data de junho de 2003, oito anos antes da decisão da Corte Suprema, portanto. 

Outro exemplo do papel fundamental dos tabeliães na proteção das novas formas de constituição de família é a escritura de união poliafetiva lavrada pela tabeliã de Tupã, cidade do interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, em agosto de 2012. Numa atitude pioneira, enfrentando uma sociedade de cunho essencialmente monogâmico, a notária lavrou a primeira escritura pública de união entre um homem e duas mulheres, declarando a convivência pública e duradoura, como entidade familiar, de três pessoas solteiras, maiores e capazes. 

Diante destes dois exemplos de escrituras que desafiaram sua época, é indiscutível que o tabelião é essencial no reconhecimento destes “novos” direitos, destas novas formas de família, garantindo que o ordenamento jurídico acompanhe a evolução da sociedade de forma célere

Deste modo, o notário exerce função precípua na sociedade contemporânea: a de conferir proteção legal às mais variadas relações entre particulares, reconhecendo em um documento público um fato social individual, portando por fé-pública aquilo que os particulares precisam preservar e codificar para assegurar direitos e obrigações. 

Estamos vivendo um momento histórico no Brasil, em que se tem lutado arduamente pela plena cidadania e igualdade de todas as pessoas. “Os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo voltaram-se à proteção da pessoa humana. A família adquiriu função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes”.[15] Neste cenário, o notariado é peça chave, eis que o tabelião é o operador do direito com maior legitimidade para construir direitos individualmente considerados, proporcionando segurança jurídica aos cidadãos, de forma célere e eficaz. A noção própria da função notarial é obter o bem comum, a paz social, de forma que o tabelião precisa estar sempre atento e pronto a resguardar novos direitos.
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[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[2] LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[4] VELOSO, ZENO. Apud DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30.

[5] Constituição Federal de 1988. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifo nosso)

[6]  LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família. In:DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 1. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 268.

[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 31.

[8]  DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 32.

[9] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[10] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 177.

[11] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.

[13] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias. Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931. Publicado em: 05.05.2011. Acesso em: 23.07.2013.

[14] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 198.

[15] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Família – 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 40.


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