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22/10/2014

O princípio da concentração dos atos registrais na matrícula imobiliária

Artigo do registrador de imóveis em Porto Alegre/RS e vice-presidente do IRIB, João Pedro Lamana Paiva; e do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Décio Antônio Erpen

Resumo: este artigo oferece uma noção doutrinária do que é o princípio da concentração dos atos registrais na matrícula imobiliária, seu fundamento jurídico e as perspectivas de sua consolidação no âmbito do Direito Registral Imobiliário a partir da edição da Medida Provisória nº 656/2014, que vigorará a partir de 7 de novembro de 2014. 

Sumário: 1. Introdução; 2. Assento legal do princípio da concentração; 3. A explicitação do princípio na nova lei.

  1. 1.      Introdução
  2.  

O princípio da concentração começou a ser desenvolvido doutrinariamente aqui no Sul, já sendo aplicado em nível nacional.

A praxe corrente era a coletânea de todo o tipo de negativas judiciais. 

Todas imprestáveis pela simples razão de que não há Registro Nacional de Demandas. Além disso, o Brasil adota o princípio do foro relativo para as ações pessoais e a gama de Justiças (comum, estadual e federal; militar, estadual e federal; trabalhista, eleitoral, foros privilegiados, etc.) ensejavam possível presença de demandas alhures, o que não poria o negócio jurídico a salvo. 

Se o direito não sabe resguardar a operação mais corriqueira, como uma compra-e-venda, é porque fracassou.

O direito não existe, unicamente, para o processo. Ele deve regrar o cotidiano do cidadão. O direito objetiva ordem e crescimento. 

A aquisição de um imóvel, no Brasil, constitui uma aventura jurídica, principalmente diante dos institutos da fraude a credores e da fraude à execução, se levados ao extremo. Principalmente de parte dos Juízes do Trabalho. 

Apregoou-se, na época, que a Lei nº 6.015/1973 atribuía ao credor a iniciativa de noticiar uma demanda para produzir efeitos perante terceiros. 

O sistema jurídico consagrou o princípio da territorialidade para os imóveis e o domiciliar para o estado das pessoas. 

A grande extensão territorial e o fenômeno da migração exigiram a prática de pôr a salvo os negócios jurídicos efetivados sob o manto da boa fé. E, para tanto, compeliu o credor a alimentar o sistema para salvaguardar eventual direito, considerando o princípio da territorialidade. 

Com a adoção da matrícula, para onde devem ser levados todos os atos oponíveis a terceiros, consagrou-se, como única prática saudável, o princípio da concentração. O que não está na matrícula não existe para o mundo jurídico, salvo a usucapião e a servidão de trânsito aparente, porque aí a publicidade é natural. 

Os defensores desse princípio têm apregoado que, em se adotando o sistema tabular, deve ele ser completo. A matrícula (fólio real), em substituição às antigas transcrições de cunho pessoal e cronológico, deve ser tão completa que dispense diligências outras, em sintonia com a segurança jurídica que o Constituinte consagrou. Deve ser satisfativo. 

O art. 167 da Lei de Registros Públicos pode ser considerado exaustivo por alguns. Todavia, o apego a essa conclusão não enriquece o sistema, também porque o art. 246 da mesma lei permite ilações no sentido de se dar elasticidade ao comando legal. 

Havia, é verdade, um movimento entre os que elaboraram o anteprojeto da Lei 6.015 de se adotar a “summa divisio”, ou seja, direitos pessoais e direitos reais. E somente estes últimos teriam acesso ao álbum imobiliário, tese que não vingou. 

Ademais, o Juiz, nos atos de condução do processo e em salvaguarda aos direitos pessoais, pode adotar medidas cautelares inominadas e que podem comprometer futura alienação. 

E para que isso fosse efetivo e saudável para a comunidade, impunha-se a publicização de tal medida, com a inscrição do ato judicial na respectiva matrícula. 

Aí, a publicidade está gerada. 

A Justiça do Trabalho ignora por completo qualquer diligência, salvo nas execuções, quando a averbação da penhora se tornou obrigatória, integrando o ato constritivo. 

Assim, nenhum fato jurígeno ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica do imóvel ou às mutações subjetivas pode ficar indiferente à matrícula do imóvel, nela ingressando quer por registro, quer por averbação. 

Assim, além dos atos translativos de propriedade, da instituição de direitos reais, na matrícula devem constar os atos judiciais: os atos que restringem a propriedade; os atos constritivos (penhoras, arrestos, sequestros, embargos), mesmo de caráter acautelatório; as declarações de indisponibilidade; as ações pessoais reipersecutórias e as reais; os decretos de utilidade pública; as imissões nas expropriações; os decretos de quebra; os tombamentos; comodatos, as servidões administrativas, os protestos contra a alienação de bens, os arrendamentos, as parcerias na matrícula.

O ato público somente se completa com a publicação no órgão oficial do Governo. Tal publicidade é fugaz, mas gera a ficção de conhecimento. A lei é que especifica qual o órgão de publicidade, não podendo a parte optar por um ou outro. 

Nos precários, também denominados de publicidade ativa, a publicidade ocorre por avisos, editais, etc., incluindo-se a Imprensa Oficial para publicação de atos de governo. Sabe-se que dois são os órgãos de publicidade: os específicos e os precários. 

Cresce, por outro lado, o confisco de áreas utilizadas para cultura de vegetais psicotrópicos, quando, na sentença criminal, são confiscadas as propriedades. Como promover-se a comunicação deste ato à comunidade? Um simples edital prestar-se-ia para tal fim? Enfim, todos os atos e fatos jurígenos que possam implicar a alteração jurídica da coisa, mesmo em caráter secundário, mas que possam ser oponíveis, sem a necessidade de se buscar, alhures, informações outras, o que, afinal, conspiraria contra a dinâmica da vida, devem estar presentes na matrícula, enquanto repositório único de informação relativa ao imóvel.  

Já os órgãos específicos, também chamados de publicidade passiva, ocorrem em Ofícios, Cartórios, Registros do Comércio, Livros de Acionistas e que geram a publicidade.  

No caso de imóveis, tal publicidade há que ocorrer, de modo absoluto, no respectivo Registro Imobiliário.

Há casos em que se exige a dupla publicidade para evitar que se gerem injustiças, como ocorre com a interdição. Isso o nosso sistema já adotou, isoladamente, é verdade. Não se pode consagrar uma ficção legal como instrumento de injustiças, em especial quando as publicações pela imprensa possuem caráter fugaz. 

Hoje as autoridades financeiras, além do decreto de indisponibilidade - que seria satisfativo -, promovem comunicação às Corregedorias da Justiça para ciência dos registradores. Assim, está a admitir que a publicação pela Imprensa Oficial não é satisfatória. Como não o é. Mas, legalmente, o Edital teria cunho satisfativo. Se o registro imobiliário se constitui no único mecanismo confiável para noticiar-se à comunidade o que lhe pode ser oponível, mister que o mesmo seja completo, ágil, seguro e universal, similar a uma Encíclica Papal: urbi et orbi.

Muito interessante seria a conjugação de dados referentes ao bem e a seu titular, daí por que elogiável a exigência legal que manda anotar eventuais inibições ao titular de direitos sobre a coisa. O curador, em caso de interdição, deveria promover, de ofício, as devidas averbações nos imóveis que integram o patrimônio do interditado. 

2.     Assento legal do princípio da concentração 

Assim, como fundamento legal do princípio da concentração, temos o art. 167, inciso II, item 5, combinado com o art. 246, ambos da Lei nº 6.015/1973: 

Art. 167, II, 5 – no Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: (...) II – a averbação: (...) da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas. 

Art. 246 – Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. 

Na 2a Jornada Ibero-Americana de Derecho Registral, realizada em Cuba de 16 a 19 de maio de 2001, a Delegação Brasileira deu especial importância ao princípio da concentração; esse tema mereceu destaque na relatoria final do evento, onde se fez consignar a seguinte passagem: 

Estudiar la propuesta del Delegado Brasileño con relación al principio de la Concentración de los Actos Administrativos y Judiciales de manera que estén contenidos en el Folio Real a fin de poseer una verdadera historia de la finca. 

Este princípio afirma, em resumo, que nada referente ao imóvel deve ficar alheio à matrícula. Embora exista a discussão, entende-se que o rol dos direitos reais é taxativo, mas o elenco de atos passíveis de ingresso no Fólio Real é exemplificativo. Logo, permite-se ingresso de outros direitos no álbum imobiliário, consoante determina o princípio da concentração. O Registro de Imóveis tem força atrativa de todos os fatos relevantes aos bens imóveis, servindo como um ímã aos títulos que interessam juridicamente à sociedade. 

No âmbito do Judiciário começou a se difundir o princípio da concentração, surgindo julgados, especialmente no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo sua aplicação: 

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AVERBAÇÃO DE DEMANDA JUDICIAL PENDENTE. É medida que visa dar publicidade, respaldada no principio da concentração que empresta eficácia aos registros contidos na matricula do imóvel. AGRAVO NEGADO. Agravo de Instrumento Nº 70006893515, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 11/11/2003). 

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE TESTAMENTO. AVERBAÇÃO DA LIDE NO REGISTRO IMOBILIÁRIO DE DEMANDA JUDICIAL PENDENTE. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA (ART. 273 CPC). AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS. INDEFERIMENTO. Admite-se a averbação da lide no registro imobiliário, visando dar publicidade, respaldada no principio da concentração que empresta eficácia aos registros contidos na matrícula do imóvel. A presença da verossimilhança da alegação, atestada por prova inequívoca, e o receio de dano irreparável ou de difícil reparação (art. 273, I, do CPC) são pressupostos que devem estar presentes para a concessão de tutela antecipada. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO. (Agravo de Instrumento nº 70030685432, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 30.9.2009). 

A Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais inseriu em seu Código de Normas, relativo aos serviços notariais e de registro, o princípio da concentração, tornando-o expressamente um dos norteadores da atuação nos ofícios de registro de imóveis: 

PROVIMENTO Nº 260/CGJ-MG/2013.Art. 621: O serviço, a função e a atividade registral imobiliária se norteiam pelos princípios constantes do art. 5º e pelos específicos da atividade, tais como: (...)

IX - da concentração, a possibilitar que se averbem na matrícula as ocorrências que alterem o registro, inclusive títulos de natureza judicial ou administrativa, para que haja uma publicidade ampla e de conhecimento de todos, preservando e garantindo, com isso, os interesses do adquirente e de terceiros de boa-fé. 

Código de Normas mineiro contém, ainda, outros artigos que explicitam a prática defendida pelo princípio da concentração: 

Art. 824. Além dos casos expressamente previstos em lei e neste Provimento, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o ato. 

Art. 825. Os atos, fatos e contratos relativos ao imóvel, registro ou averbação ou às pessoas neles constantes poderão ser averbados para que produzam efeitos contra terceiros. 

Art. 826. As informações constantes dos registros ou das averbações são suficientes para atestar tanto a titularidade dos direitos quanto as restrições pessoais e os ônus, encargos ou gravames existentes no imóvel. 

3. A explicitação do princípio na nova lei 

No Congresso Nacional encontra-se em tramitação, há muito tempo, o Projeto de Lei nº 5.708/2013, do Deputado Federal Paulo Teixeira, o qual tem por objetivo explicitar o princípio da concentração em toda a sua extensão, evidenciando o seu amplo alcance e suas importantes consequências jurídicas. 

Mostrava-se necessária a explicitação desse princípio, através de um texto legal incisivo, conferindo-lhe a amplitude e o reconhecimento que ele necessitava, passando a promover uma verdadeira revolução no âmbito do Direito Registral Imobiliário brasileiro.

Entretanto, o Congresso Nacional perdeu essa grande oportunidade de promover importantes mudanças legais porque o projeto permaneceu em discussão e não avançou positivamente à aprovação. 

Apesar de dispensável uma lei específica, porque o sistema já adotara o princípio, houve por bem o sistema legal frisar a importância do instituto jurídico. 

Dessa forma, o Poder Executivo antecipou-se e adotou integralmente o que naquele Projeto de Lei estava sendo proposto, com força de lei, através da Medida Provisória nº 656/2014, que vigorará a partir de 7 de novembro de 2014

Assim, as novas disposições normativas preveem a concentração de todas as informações relevantes ao imóvel na respectiva matrícula, o que deverá funcionar como fator de simplificação dos negócios translativos da propriedade no contexto do mercado imobiliário, oferecendo maior estabilidade e confiança nas relações jurídicas.

 A partir de agora estará sempre presente a preocupação em fazer com que na matrícula, constem todas as situações jurídicas relevantes acerca da situação do imóvel, sob pena de não se poder postular a decretação de ineficácia do negócio jurídico que promoveu a alienação ou a oneração do imóvel transacionado. Esse proceder constitui a plena concretização do princípio da concentração, ganhando relevo, aqui, o que diziam os romanos: “dormentibus non succurrit jus” (o direito não socorre aos que dormem). 

Estima-se que essa centralização de dados também provocará uma redução de custos e riscos na realização dos negócios imobiliários, provenientes do fato de não se ter de enfrentar a burocracia existente na obtenção de certidões negativas.  

Hoje se insiste que os negócios jurídicos devem ser céleres, também porque as Fazendas Públicas estão colaborando na arrecadação do imposto correspondente. 

O encaminhamento de uma escritura de compra-e-venda não pode ultrapassar a dois dias, também porque os Agentes Financeiros assumiram funções notariais, e possuem os contratos já adredemente lavrados. Mas possuem um mal de origem: cuidam mais do crédito do Agente Financiador do que da segurança do negócio jurídico em si. 

Qualquer dívida pendente sobre o imóvel, portanto, se não for devidamente averbada na matrícula, não terá oponibilidade em relação a terceiros.  

Outro aspecto importante é que, em muitos casos – senão na maioria deles – o comprador só vem a saber de alguma pendência jurídica existente sobre o imóvel depois de a venda estar perfeitamente concluída. Para esses casos, a Medida Provisória garante ao adquirente de boa-fé a eficácia do negócio jurídico que celebrou, inclusive contra a evicção, se os atos jurídicos precedentes, originadores da pendência, não estiverem averbados na matrícula ao tempo da celebração do negócio.  

O adquirente também não mais será surpreendido ao saber que o imóvel que comprou estava tombado, assim como a própria fraude à execução passará a ser objetivamente caracterizada fazendo cessar uma infindável discussão jurisprudencial dos Tribunais em torno do assunto, dentre outros tantos casos que podem ser referidos. 

O que a nova norma pretende é afastar os riscos a que está sujeito todo aquele que, hoje, se aventura a adquirir um imóvel no Brasil, porque há várias situações em relação as quais não se tem como se resguardar, como é o caso do promitente-comprador que, mesmo não tendo registrado sua promessa de compra-e-venda na matrícula, estará legitimado a manejar Embargos de Terceiro contra o credor hipotecário ou contra o credor que tenha promovido ação executiva, situações que, uma vez prestigiado em sua inteireza o princípio da concentração, não mais terão lugar. 

A partir da vigência da Medida Provisória, a qual também introduziu alteração na Lei nº 7.433/1985, o procedimento do Tabelião na lavratura de escrituras ficou mais simplificado, passando a exigir tão-somente: (a) comprovação do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos; (b) apresentação das certidões fiscais; (c) apresentação das certidões de propriedade e de ônus reais, dispensada sua transcrição no ato notarial.

O novo patamar jurídico é verdadeiramente revolucionário se comparado ao que se tinha antes do advento da Medida Provisória nº 656/2014, levado em conta o nível de segurança jurídica proporcionada aos negócios imobiliários . 

O bom senso prevaleceu, e os que apregoavam a prevalência do processo sobre a vida, devem repensar suas teses, também porque “A vida é mais rica do que a Lei”. 

Finalmente, a Medida Provisória passará a valer, para os novos atos, trinta dias após a sua publicação, inaugurando um novo marco na segurança jurídica imobiliária que assegurará a oponibilidade em relação a terceiros quanto ao que estiver devidamente averbado no Fólio Real, não interessando o número de atos consignados na matrícula, mas sim a garantia de que ali constam todos os dados comprobatórios de que o imóvel está livre de ônus ou quaisquer outras restrições a sua alienação ou oneração.


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