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12/08/2014

Artigo - Como enxergar o ISS sobre serviços extrajudiciais? - por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro

Desde o julgamento da ADI 3089/DF, pelo Supremo Tribunal Federal, em que ficou sedimentada a constitucionalidade da cobrança do ISS sobre os serviços notariais e de registros, vem se estabelecendo acirrada discussão sobre qual deve ser a base de cálculo para a cobrança deste imposto de competência municipal.
 
De início, anote-se que no julgamento supramencionado a discussão quanto à forma de cobrança do ISSQN não foi objeto de questionamento. Naquela oportunidade, apenas se assentou que é legítima e constitucional a incidência do referido imposto municipal sobre a atividade extrajudicial de notas e registros públicos. Nesse sentido, aliás, manifestou-se o próprio Supremo Tribunal Federal (Recl. 12.610/PB, Rel. Min. Gilmar Mendes).     
 
O fato é que, hoje, a divergência sobre qual deve ser a base de cálculo para a hipótese assenta-se em duas posições, incompatíveis entre si. A primeira delas orienta-se no sentido de que o critério quantitativo da regra matriz de incidência tributária do ISS, no que toca os serviços notariais e de registros, deve levar em conta o regime geral de tributação, tomando como base de cálculo o preço do serviço (art. 7º da LC 116/2003). Já a segunda orientação, que adota o regime especial de tributação do ISS, sustenta que as alíquotas incidiriam sobre valores fixos, nos termos do art. 9º, § 1º, do Decreto-lei 406/1968, tendo em vista tratar-se de regra aplicável quando os serviços tributados são prestados em caráter pessoal. 
 
Fica o alerta de que os últimos julgados do Superior Tribunal de Justiça, infelizmente, vêm se apegando a uma análise ilusória do funcionamento das serventias extrajudiciais e, com a devida vênia, reportando-se a uma visão completamente divorciada da atual conformação constitucional dos serviços notariais e registrais. Nesse sentido, vide: EDcl no AREsp 431.800/PR, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª T., julgado em 25.03.2013; AgRg no AREsp 344895/RO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª T., julgado em 18/02/2014. AgRg nos EDcl no REsp 1.362.707/SC, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª T, julgado em 08/05/2014.  
 
Esses julgados têm sustentado que os notários e registradores perseguem “atividade manifestamente lucrativa” (sic) e que não há a prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio particular delegatário, “já que podem formar uma estrutura economicamente organizada para a prestação do serviço de registro público, assemelhando-se ao próprio conceito de empresa” (sic). Por isso, nesses precedentes tem prevalecido que notários e registradores não podem ser tributados pela regra especial do ISS para atividades prestadas em caráter pessoal. 
 
De plano, há uma advertência a ser considerada. Na atividade extrajudicial, considerar como grandeza a ser tributada o “preço do serviço”, em termos constitucionais, significa violar o princípio da capacidade contributiva e, em consequencia, a isonomia, eis que tal base de cálculo alcança não só a parcela dos emolumentos destinada aos notários e registradores, mas também abarca outros valores que são considerados repasses públicos destinados ao Estado, aos Tribunais de Justiça, às Santas Casas de Misericórdias, Fundo do Registro Civil entre outras instituições, a depender do Estado.
 
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui entendimento assente de que “(...) a receita bruta não pode servir como a grandeza do elemento tributário quantitativo. A base de cálculo do ISS deve ser, tão somente, auferido pelo oficial delegatário, daí estando excluídos, por óbvio, os demais encargos a ele não pertencentes” (TJSP – Arguição de Inconstitucionalidade nº 994.09.222778-0, Órgão Especial, julgado em 26.05.2010).
 
Superada esta questão inicial, passa-se à investigação da imprescindibilidade de se considerar a atividade de notários e registradores como sendo de caráter pessoal.
 
Com o devido respeito, aderir a raciocínio diverso é, antes de tudo, desconsiderar a premissa maior  que, in casu, é natureza jurídico-constitucional dos serviços notariais e registrais.
 
Já não é novidade que os serviços notariais e de registros são prestados por pessoas físicas, mediante delegação do Poder Público, em caráter pessoal, e que os delegatários assumem todos os riscos e responsabilidades (civil, criminal e administrativa) pela prestação desses serviços, ainda que contratem colaboradores para auxiliá-lo no seu mister.
 
Em outros dizeres, a delegação dessa peculiar função pública é feita ao particular em caráter personalíssimo. Tanto o é que a lei exige o preenchimento de requisitos técnicos específicos, verificados mediante concurso público de provas e títulos, para que alguém possa assumir a titularidade de uma serventia extrajudicial.
 
Em sede de direito positivo, o próprio art. 3º da Lei nº 8.935/1994 é muito claro: “Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro”. Nesse intuito, ao exigir que o delegatário seja profissional do direito, a lei revela que a atividade notarial e registral deve ser exercida por pessoa física com formação intelectual específica.
 
Além disso, o próprio art. 14 da Lei nº 8.935/1994 elenca os requisitos pessoais para o exercício da atividade, verbis: “Art. 14. A delegação para o exercício da atividade notarial e de registro depende dos seguintes requisitos: I - habilitação em concurso público de provas e títulos; II - nacionalidade brasileira; III - capacidade civil;  IV - quitação com as obrigações eleitorais e militares; V - diploma de bacharel em direito; VI - verificação de conduta condigna para o exercício da profissão.”
 
Apenas com esses argumentos não parece difícil concluir pelo caráter pessoal ínsito à natureza dos serviços notariais e registrais.
 
Contudo, vamos além.                                    
 
A organização da serventia extrajudicial, bem como seu gerenciamento administrativo e financeiro é de responsabilidade exclusiva do titular da delegação, assim como também é direta do notário e/ou registrador a responsabilidade civil pelos atos decorrentes do exercício de sua atividade, ainda que esses atos causadores de danos tenham sido praticados por seus prepostos e colaboradores (arts. 21 e 22 da Lei nº 8.935/94).
 
O grande equívoco da primeira orientação reside no fato de se considerar que os notários e registradores, no âmbito de suas serventias, podem formar uma estrutura economicamente organizada para a prestação do serviço de notas e registros públicos, assemelhando-se ao próprio conceito de empresa.
 
Ora, não obstante a possibilidade de contratação de terceiros pelos titulares de cartórios (art. 20, da Lei 8.935/94), a delegação é pessoal e personalíssima, obtida em concurso público, exclusivamente para pessoa física, que não pode delegar a sua profissão a terceira pessoa e tampouco constituir empresa de notas ou registros.
 
Ressalte-se, ademais, que as serventias extrajudiciais são entidades destituídas de personalidade jurídica própria, ou seja, juridicamente não existem. Noutro falar, o que existe para o direito são as pessoas físicas que receberam a delegação do Poder Público para o exercício da atividade notarial e registral, nos termos do art. 236 da Constituição Federal. Diga-se também que o fato de as serventias possuírem CNPJ, não significa que se trata de pessoa jurídica. Pelo contrário. Cuida-se de providência que permite às autoridades competentes o controle e a fiscalização administrativa e tributária.
 
Ainda que se idealize organização complexa em uma serventia extrajudicial, com vários funcionários, em que todos estes atuem nos serviços correlatos à atividade notarial e/ou de registros públicos, toda a prestação do serviço público delegado está concentrada nas mãos dos notários e registradores.
 
Com efeito, é de se observar que, por mais que os titulares possam contratar prepostos (auxiliares, escreventes e substitutos), esses apenas auxiliam a prestação do serviço que fica presidida e concentrada na pessoa do titular. Dito de outro modo, esses colaboradores não detém a delegação do serviço; não possuem a habilitação específica exigida pela Constituição e pela Lei nº 8.935/1994; não são responsáveis pela administração e organização da serventia e tampouco respondem diretamente por eventuais danos causados a terceiros; não são fiscalizados pelo Poder Judiciário.
 
Insista-se: tanto é pessoal o trabalho dos notários e registradores que somente eles respondem administrativamente perante a Corregedoria Geral de Justiça, estando sujeitos até mesmo à perda da delegação (art. 32 da Lei 8.935/94).
 
Em realidade, o que ocorre é que a demanda dos serviços e a necessidade dos notários e registradores observarem os seus deveres – impostos ope legis, assim que assumem a titularidade de uma delegação –, reclamam a estruturação mínima das serventias extrajudiciais para o atendimento com presteza dos usuários desses serviços públicos delegados pelo Poder Público. 
 
Nesse viés, colhe-se recente posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, representado por voto da lavra do Desembargador José Luiz Germano, que é de uma clareza sem precedentes nessa matéria:
 
A atividade é pessoal, ainda que exercida com a colaboração de outras pessoas, o que é necessário quando o volume de trabalho é maior, mas que não afasta de forma alguma a pessoalidade do trabalho.
 
Nos cartórios de imóveis, como é o caso dos autos, a competência é territorial e atribuída a determinada circunscrição, de modo que não há concorrência, competição e nem mesmo esboço de atividade empresarial, ainda que do ponto de vista econômico.
 
Mas, mesmo que concorrência houvesse, como há nos serviços de notas, ainda assim não estaríamos diante de uma atividade empresarial, mas de simples competição desse serviço público feito por delegatários privados que exercer uma função pública de forma particular, o que alguns chamam de profissões públicas. A competição de um notário com outro e a contratação de auxiliares, como é o caso dos escreventes, não fazem com que o trabalho deixe de ser pessoal, até porque também pessoal é a responsabilidade desses profissionais do direito. 
 
Ao lançar mão de didática comparação, o supracitado magistrado bandeirante arremata seu voto:
 
(...) Assim como o dentista que tem uma secretária e uma auxiliar não deixa de prestar trabalho pessoal, o notário ou o registrador que têm a colaboração de empregados análogos, como é o caso dos auxiliares, escreventes e substitutos, não perdem por isso a pessoalidade de sua peculiar profissão pública de particulares em colaboração com o Estado. (TJSP – Apelação nº 0008438-11.2009.8.26.0451, 14ª Câmara de Direito Público, Rel. José Luiz Germano, julgado em 22/05/2014).
 
Como senão fosse suficiente toda esta fundamentação, some-se ao que já foi exposto o reclamo contemporâneo de uniformidade de tratamento dado aos notários e registradores nas mais diversas searas, a partir de sua natureza jurídica constitucionalmente considerada.
 
Note-se, nesse ponto, que, para fins de tributação do imposto de renda, a legislação vetora confere aos notários e registradores o mesmo tratamento dispensado aos profissionais liberais que exercem trabalho não assalariado, sujeitos ao regime de recolhimento mensal obrigatório pela pessoa física (“carnê-leão”) – vide arts. 45 e 106 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR). Na mesma linha de raciocínio, a legislação previdenciária determina que notários e registradores sejam inscritos como “contribuinte individual” (art. 9º, § 15, do Decreto nº 3.048/1999). É dizer, em suma, não há qualquer motivo lógico-jurídico para, em sede de tributação de ISS, diferenciar a natureza jurídica de tabeliães e oficiais de registros, sob pena de instabilidade constitucional.
Lícito concluir, pois, que o objetivo deste ensaio foi o de demonstrar a necessidade de uma releitura da forma de quantificação do ISS incidente sobre os serviços notariais e de registros, já que seus atores exercem – incontestavelmente – de forma pessoal, na condição de pessoas naturais, a delegação personalíssima que lhes foi outorgada pelo Estado, devendo, assim, referido imposto municipal ser recolhido em valor fixo e não em percentual sobre o “valor do serviço”. Enfim, apenas olhos abertos não são aptos à cegueira deliberada!


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