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14/10/2013

Repórter tira carteira de identidade em 9 Estados

A lei criada em 1997 para unificar a emissão de carteiras de identidade no país nunca saiu do papel, omissão do governo federal que permite a uma mesma pessoa ter um RG em cada Estado. 

Ou seja: um mesmo nome, mas 27 documentos com numerações diferentes. 

E essa mesma pessoa pode ainda tirar facilmente um RG com a própria foto e outro nome, prática que serve de base a uma série de crimes. 

A Folha encontrou essas brechas em apuração iniciada em janeiro deste ano. 

O mesmo repórter, com RG original de SP, viajou a oito capitais e, em cada uma delas, fez uma nova carteira. 

Foi assim em Vitória, Campo Grande, Maceió, João Pessoa, Natal, Rio Branco, Porto Velho e Porto Alegre. 

Ter um RG em cada Estado é possível porque a emissão dos documentos é estadual, e os institutos de identificação não trocam informações. 

Previsto em lei desde 1997 para corrigir essa falha, um cadastro nacional de identidades, que deveria armazenar eletronicamente dados de todas as pessoas, nunca saiu do papel, embora tenha sido anunciado pelo ex-presidente Lula em dezembro de 2010. 

Atualmente o único requisito para fazer um RG é a apresentação da certidão de nascimento ou de casamento. 

A falta de um sistema que reconheça digitais coletadas em outros Estados permitiu ao repórter fazer em Belo Horizonte um RG com sua foto e suas digitais, mas com o nome de um colega do jornal. 

Expedido por órgão oficial, o documento com o nome incorreto é válido e revela a brecha. Basta que o fraudador tenha certidão de nascimento ou casamento. 

Para corrigir as falhas existentes, o governo federal anunciou em 2010 a implantação do RIC (Registro de Identidade Civil), um cartão com chip para substituir o atual RG em até dez anos. 

O projeto, porém, empacou. Um contrato com a Casa da Moeda para emissão de 2 milhões de RICs, ao custo de R$ 90 milhões, fracassou. Foram produzidos apenas 14 mil cartões, e só 52 estão válidos. 

O RIC teve de ser "redesenhado" em 2012. Foi previsto um custo de R$ 6 bilhões em 12 anos. Decisões sobre onde ficará o cadastro nacional de identidades e qual tecnologia será usada nunca foram tomadas, porque aguardam decisão do Palácio do Planalto. 

Ministério da Justiça não se pronuncia sobre cadastro nacional 

O Ministério da Justiça, encarregado no governo federal pela implementação do sistema nacional de identidades que substituirá os atuais RGs, afirmou que, por ora, não irá se pronunciar sobre o tema. 

A pasta coordena um grupo interministerial, composto, entre outros, por representantes dos ministérios do Planejamento, da Previdência e da Fazenda, que se reúne para deliberar a respeito do RIC (Registro de Identidade Civil). 

Segundo as atas das reuniões, os primeiros cartões do RIC foram lançados sem que tivessem sido decididas questões fundamentais de infraestrutura, que darão suporte ao banco digital necessário para armazenar dados de cerca de 200 milhões de brasileiros.

Entre essas questões estão, por exemplo, a utilização ou não do sistema de reconhecimento de digitais que já é usado pela Polícia Federal e o tipo de tecnologia -setores do Planejamento defendem que seja 100% nacional. 

Tais decisões, porém, dependem da Presidência, que, por sua vez, aponta o Ministério da Justiça como o único órgão apto a tratar do tema. 

RG COM NOME ERRADO 

Sobre a possibilidade da emissão de RG com o nome de uma outra pessoa, o Instituto de Identificação de Minas Gerais afirmou que, no Estado, isso só é possível se a certidão de nascimento usada no pedido for verdadeira. 

"Como procedimento, ligamos para o cartório para verificar a autenticidade das certidões apresentadas", disse o assessor de gabinete do instituto, Evando de Assis. 

Assis afirmou que Minas Gerais ainda não tem o Afis (sigla em inglês para Sistema Automático de Identificação de Impressões Digitais), já instalado em Estados como Rio Grande do Sul, Rondônia e Mato Grosso do Sul, em antecipação ao projeto federal. 

Mas disse que um sistema em nível apenas estadual não é capaz de reconhecer o crime, já que não há unificação com cadastros de outros Estados do país. 

"Não há outro jeito. Sem um cadastro nacional de identidades, o país está à mercê dos estelionatários", disse. "Essa é uma fraude comum no país inteiro." 

Procurados e informados sobre os RGs tirados pelo repórter, os órgãos de identificação dos demais Estados onde a reportagem fez RGs afirmaram que cumprem a lei, de 1983, que exige somente certidão de nascimento ou de casamento para expedir carteiras de identidade. 

Informaram também que, conforme a mesma lei, não é obrigatório residir no Estado para solicitar um RG. 

Reportagem sobre RG foi acompanhada pela área jurídica da Folha 

Todos os passos para a produção da reportagem foram acompanhados pelo departamento jurídico da Folha. 

A orientação dos advogados do jornal teve como objetivo documentar que o único interesse seria o de revelar a fragilidade do sistema de emissão de carteiras de identidade e não utilizar esses documentos para fins ilícitos. 

O RG com identificação incorreta será devolvido às autoridades de Minas Gerais, acompanhado de um ofício no qual será solicitado seu cancelamento. 

Os outros oito RGs, feitos com o nome correto, mas com números diferentes, serão entregues ao Ministério da Justiça.

A escolha de todos os Estados foi aleatória, e as viagens do repórter a cada um deles coincidiu com a cobertura de outros eventos jornalísticos. 

Nos Estados do Nordeste, por exemplo, o repórter tirou os RGs em meio à produção de uma série de reportagens sobre a violência na região. 

Certidão e paciência para enfrentar filas são os pré-requisitos para tirar o RG 

Um mesmo repórter da Folha conseguiu ao longo deste ano tirar RGs em Vitória, Campo Grande, Maceió, João Pessoa, Natal, Rio Branco, Porto Velho e Porto Alegre. 

Ter RG em Estados diferentes não é considerado crime, mas abre brechas. 

Com dois RGs, uma pessoa pode pedir um atestado de bons antecedentes no Estado onde tenha a ficha limpa e apresentá-lo no Estado onde tenha pendências na Justiça. 

Essa brecha permite a ela se inscrever em um concurso público, por exemplo. 

País afora, a única exigência para solicitar uma nova carteira de identidade é a apresentação de uma certidão de nascimento ou de casamento -além de paciência para enfrentar longas filas. 

Em Campo Grande, por exemplo, a Folha esperou sete horas para tirar o RG em janeiro e teve de pagar uma taxa de R$ 26 pela primeira via, o que é vetado por lei federal. O Estado informou que a cobrança já foi extinta. 

Em Porto Velho, moradores e repórter passaram a noite em frente ao posto de atendimento para garantir uma senha. Depois disso, foi necessário esperar por mais três horas até a coleta de digitais. 

Já em Maceió, o RG demorou 40 dias para ficar pronto. 

Em capitais como Rio Branco e Natal, além da certidão de nascimento, servidores perguntaram se o repórter residia no Estado. Em todos os casos, bastou um "sim". 

Ao longo da apuração, a reportagem encontrou fragilidades. A principal: seria possível fazer RG com outro nome. Assim, em Belo Horizonte, o repórter apresentou a certidão de nascimento de outro jornalista da Folha. 

Uma semana depois, estava pronto o RG com nome, filiação, local e data de nascimento de Adriano dos Santos Brito, mas com foto e digitais de Reynaldo Turollo Junior. 

O RIC (Registro de Identidade Civil), previsto para substituir o RG, deverá impedir que isso ocorra. Um indivíduo já identificado em qualquer Estado do país será reconhecido, em qualquer outro Estado, por suas digitais. 

Tirar RG com nome falso é crime. Segundo o especialista em combate a fraudes Lorenzo Parodi, uma identidade falsa permite abrir contas bancárias, assinar contratos e obter financiamentos, além de ser base para esquemas de lavagem de dinheiro. 

Um idoso preso em 2003 em Goiás com 16 identidades com nomes diferentes é um caso emblemático. Ele recebia 16 pensões do INSS.


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