A verdade biológica deve prevalecer sobre a verdade registral

   
 

Acórdão

“O registro não tem a característica plena de espontaneidade”.

Apelação cível. NEGATÓRIA de paternidade C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. verdade biológica que prevalece sobre a verdade REGISTRAL. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SOCIOAFETIVA.

1. O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados.

2. Constitui-se em decorrência da lei (artigos 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, e 227 da Constituição Federal), ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar.

3. Se o autor registrou o réu como filho, sem saber que não era o pai biológico, e não manteve qualquer relação socioafetiva com ele, a ação negatória de paternidade é medida que se impõe, pois, neste caso, a verdade biológica deve prevalecer sobre a verdade registral.

RECURSO PROVIDO.

Apelação Cível - Oitava Câmara Cível
Comarca de Vacaria
C.D.S.M. - APELANTE
G.B.M. - APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Luiz Ari Azambuja Ramos (Presidente e Revisor) e Des. Rui Portanova.

Porto Alegre, 05 de outubro de 2006.

DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA,
Relator.

RELATÓRIO

Des. Claudir Fidélis Faccenda (RELATOR)

Trata-se de recurso de apelação interposto por C. D.S.M., inconformado com a sentença das fls. 107/110, que julgou improcedente a “Ação Declaratória de Negativa de Paternidade, cumulada com Retificação de registro Civil e Exoneração de Alimentos” movida contra G. B.M, sob o fundamento da filiação socioafetiva.

Em razões recursais das fls.121/129, relata que com base no laudo técnico emitido pelo Instituto de Patologia Clínica H. PADRINI (fls. 10 e ss.), no qual que se reconhece que ele não é o pai biológico do réu, propôs ação para ver desconstituída a paternidade e, como conseqüência, retificado o registro de nascimento do menor.

Todavia, inobstante a prova pericial juntada, fidedigna e em momento algum impugnada pelo réu, a ação foi julgada improcedente, sob a fundamentação da paternidade sociafetiva. Diz não concordar com a sentença, já que a socioafetividade imprescindível entre duas pessoas para que seja reconhecida a filiação não é aquela meramente esporádica, interrupta, passageira e sem qualquer caráter de estabilidade. Necessita-se, para esse fim, que a convivência seja capaz de demonstrar a existência real de liame entre os envolvidos, o que sequer foi alegado no presente caso.

Afirma não haver qualquer relação entre o autor e réu que pudesse caracterizá-los como pai e filho. Relata, ainda, que o reconhecimento da paternidade não se deu por vontade própria, mas, sim, por ordem judicial. Do exposto, requer provimento ao recurso para que a sentença seja totalmente reformada, acolhendo-se o pedido formulado na exordial.

Contra-razões apresentadas às fls. 133/136, onde o apelado alega que o pedido do autor apenas alcançaria sucesso se ele comprovasse que reconhecimento se deu por erro, o que não ocorreu. Ademais, existem provas suficientes da relação socioafetiva, razão pela qual deve ser mantida a sentença (fls. 133/136).

O Ministério Público opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 138/139).

É o relatório.

VOTOS

Des. Claudir Fidélis Faccenda (RELATOR)

O autor busca ver desconstituída a sua paternidade em relação ao réu, aduzindo que, embora seja o pai registral, não é o biológico, inexistindo, também, qualquer relação socioafetiva entre eles.

Na inicial, relatou ter mantido um relacionamento amoroso com a mãe do requerido, sendo que após a ruptura, reencontraram-se, mantiveram relação sexual e novamente se separaram. Depois de oito meses, a mãe do requerido comunicou-lhe a gravidez e a paternidade. Alegando que por falta de instrução à época, quando contava com 18 (dezoito anos de idade), e amedrontado pelo processo judicial, acabou por reconhecer a paternidade em juízo. Todavia, questionando a ausência de semelhança física com o réu, resolveu fazer um exame de DNA, com o que as partes concordaram. Realizado o exame pericial, comprovou-se que o réu não é seu filho biológico, razão pela qual a negatória de paternidade é medida que se impõe.

Com razão o autor.

Filiação, segundo PAULO LUIZ NETTO LOBO[1], é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais considerada filha da outra (pai ou mãe). O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados.

Para o doutrinador citado:

“O estado de filiação constitui-se ope legis ou em razão da posse de estado, por força da convivência familiar (a fartiori, social, consolidada na afetividade. Nesse sentido, a filiação jurídica é sempre de natureza cultural (não necessariamente natural), seja ela biológica ou não biológica”.

No direito brasileiro atual, com fundamento no art. 227 da Constituição e nos arts. 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, consideram-se estados de filiação ope legis:

a) filiação biológica em face de ambos os pais, havida de relação de casamento ou da união estável, ou em face do único pai ou mãe biológicos, na família monoparental;

b) filiação não-biológica em face de ambos pais, oriunda de adoção regular; ou em face do pai ou da mãe que adotou exclusivamente o filho; e

c) filiação não-biológica em face do pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga”.
[...]

Os estados de filiação não biológica referidos nas alíneas b e c são irreversíveis e invioláveis, não podendo ser contraditados por investigação de paternidade ou maternidade, com fundamento na origem biológica, que apenas poderá ser objeto de pretensão e ação com fins de tutela de direito de personalidade”.[2] (grifei).

Já a posse do estado de filiação se verificará quando alguém assumir o papel de filho em face daquele que assumir o papel de pai ou mãe, independentemente do vínculo biológico. A posse do estado de filho é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade entre as partes, havendo demonstração perante a sociedade da relação pai e filho.

Configuram-se posse do estado de filiação a adoção de fato, os filhos de criação, e a chamada “adoção à brasileira”.

No tocante à adoção à brasileira, esta se dá com a declaração falsa e consciente de paternidade e maternidade por quem não é o genitor (a) da criança, sem a observância das exigências legais para a adoção. Também tipifica a adoção à brasileira o reconhecimento espontâneo de paternidade por quem sabe não ser o pai biológico.

Outrossim, quando a relação entre as partes atingir, por longos anos, o estado de filiação, o registro assim obtido não poderá ser invalidado, pois sempre deverá ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, levando-se em consideração a proteção integral aos interesses das crianças (art. 227, da Constituição Federal).

Por isso, a jurisprudência deste Tribunal tem entendido que a ação negatória de paternidade ou a anulatória do registro de nascimento, quando interpostas pelo pai registral, só podem ter como fundamento o vício de consentimento, já que o reconhecimento espontâneo da paternidade é irrevogável. Provado o vício, ainda assim, o êxito da demanda está atrelado à demonstração da inexistência da posse do estado de filho.

Outras cortes, no entanto, reconhecem o estabelecimento jurídico da paternidade exclusivamente pelo critério biológico, considerando que os vínculos parentais são definidos por meio da realidade biológica.

Conforme anotado por LEILA MARIA TORRACA DE BRITO[3], “Os tribunais que firmaram tendência pela exclusão da paternidade quando o exame de DNA não apresenta compatibilidade genética julgam que os registros de nascimento devem retratar a realidade biológica, estabelecendo a verdade real sobre a paternidade. Consideram, nesses casos, que o reconhecimento espontâneo foi baseado em falsa declaração e que a evolução da engenharia genética não deixa dúvidas à questão”.

Nesse sentido:

“AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – EXAME DE DNA – PROCEDÊNCIA DO PEDIDO – REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO – RETIFICAÇÃO.

Ação negatória de paternidade. Prova irrefutável da veracidade da negativa da paternidade. Cancelamento de registro de nascimento. O sistema de registro público adotado no Brasil é regido pelo princípio da veracidade, pelo que todos os assentos efetivados nos cartórios do registro civil das pessoas naturais devem ser fiéis à realidade fática. No caso dos registros de nascimento, os assentos devem retratar a realidade biológica. Prova inquestionável da falsidade do registro de nascimento da menor. Sentença fiel à realidade dos fatos. Desconstituição do registro de paternidade. Solução jurídica sustentada por diversos precedentes desta Corte de Justiça. Improvimento do recurso.” (Apelação Cível n.º 2005.001.17670, 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rel. Des. Edson Vasconcelos, julgado em 08/09/2005).

“AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE FILHO – EXAME DE DNA NEGATIVO – INSCRIÇÃO NO REGISTRO CIVIL – IRRELEVÂNCIA.
Ação negatória de paternidade. Exclusão da paternidade. Exame de DNA. Irrelevância do reconhecimento da paternidade. Excluído a paternidade, por via do exame de DNA, não tem qualquer relevo o fato de ter o suposto pai registrado como seu filho o autor. Impõe-se a concessão de gratuidade de justiça ao réu, em face da afirmação de pobreza feita nos autos. decisão parcialmente reformada”. (Apelação Cível n.º 2005.001.33357, 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Des. Rel. Jair Pontes de Almeida, julgado em 24/08/2004).

Cotejando as duas posições acima referidas, entendo que a melhor solução a ser adotada é a análise, em cada caso concreto, de que forma e em quais circunstâncias ocorreu o registro, bem como se existiu, ou não, a relação de afetividade entre as partes de forma contínua, duradoura, exteriorizada, apta, assim, para caracterizar a posse do estado de filho.

No caso em exame, pelo que se depreende dos autos, o autor não registrou “espontaneamente” o réu, o que somente ocorreu em juízo, depois de iniciada uma investigação oficiosa de paternidade. Assim, não merece acolhida a alegação no sentido de que ele quis reconhecer o réu como filho, mesmo sabendo da possibilidade de não ser o pai biológico. Não se pode ignorar a pressão psicológica sofrida por quem enfrenta um processo judicial, ainda mais em se tratando de ação versando sobre alimentos, onde a própria liberdade do requerido pode estar em jogo.

Por outro lado, o autor jamais chegou a conviver com o réu ou com sua genitora, tendo em vista que, depois das relações sexuais havidas no período da concepção, não teve qualquer contato com a mãe do menor.

Não há, nos autos, qualquer adminículo de prova da existência de relação socioafetiva entre as partes, o que sequer foi alegado durante toda a instrução processual, matéria somente levantada agora, em sede de contra-razões recursais.

Assim, conforme já decidido por esta Câmara, “o interesse por parte do apelante está presente, uma vez que não pode pairar a menor dúvida sobre uma relação de parentesco que vai além da vida das pessoas, sob pena de se perpetuar uma falsa família para sempre.” (Apelação Cível n.º 70007685290, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, julgada em 15/04/2004).

O exame DNA realizado excluiu o apelante de ser o pai do apelado (fls. 10/12), não tendo o laudo sofrido qualquer impugnação quanto a sua confiabilidade.

Portanto, não sendo o autor o pai biológico do réu, e inexistindo relação socioafetiva entre eles, a verdade biológica deve prevalecer sobre a verdade registral, abrandando-se a regra do “pater is est”. Há muito já se superou a regra de que “pai é aquele cujo nome consta no registro civil”. É do próprio interesse da criança a busca pela verdade biológica, pois o seu bem estar passa pela segurança jurídica e esta não se consegue quando o papel registral contem uma falsidade. Aliás, conhecendo o seu verdadeiro pai, o réu poderá, inclusive, iniciar uma relação de afeto com ele, já que ausente qualquer relação de afetividade com o recorrente.

Em caso similar, esta colenda Câmara já decidiu nesse sentido:

Apelação cível. Investigatória de paternidade. Verdade biológica que prevalece sobre a verdade socioafetiva.

O reconhecimento de uma filiação, que não corresponde à verdade biológica, poderá ser impugnado por falsidade material ou ideológica, ainda mais hoje, diante do progresso da ciência, quando um exame de DNA pode decifrar o código genético de uma pessoa. A paternidade socioafetiva só encontraria compasso quando a afetividade provier de ambos os litigantes. A afetividade, nestes casos, está ligada e atrelada ao conceito de reciprocidade de sentimento e afeto, que não prospera na situação dos autos. Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70007685290, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 15/04/2004).

Diante do exposto, dou provimento ao recurso, dando o efeito constitutivo negativo à decisão, excluindo o apelante da paternidade com relação ao apelado, e exonerando-o dos alimentos. Determino, ainda, que o Cartório Civil das Pessoas Naturais de Vacaria R/S seja oficiado para que proceda as devidas alterações.

Invertida a sucumbência.

Des. Luiz Ari Azambuja Ramos (PRESIDENTE E REVISOR) - Estou acompanhando o e. Relator, no caso concreto.

Na verdade, neste Tribunal se tem reconhecido a paternidade socioafetiva com supremacia à biológica, quando se trata de reconhecimento espontâneo do “pai de registro”, sem vício de consentimento, mesmo sabendo não ser o pai biológico do registrado.

No caso, entretanto, parece mesmo que o registro não tem a característica plena de espontaneidade, como pondera o e. Relator, diante da ameaça judicial que por certo atemorizou o autor que assumiu a paternidade do réu.

Fundamentalmente, ademais, a convivência entre o pai e o filho “de registro” não mostra uma afetividade própria dessa relação, de modo que a paternidade socioafetiva efetivamente não pode ser concebida.

Assim, afastada a paternidade biológica pelo exame de DNA, tenho também que não se pode chancelar um estado de filiação claramente artificial, obrigando o pai a uma condição que se sabe falsa, impedindo inclusive que o filho busque a sua própria identidade familiar, se o desejar.

Por essas razões, estou também dando provimento à apelação.

Des. Rui Portanova - De acordo.

DES. LUIZ ARI AZAMBUJA RAMOS - Presidente - Apelação Cível nº 70016410912, Comarca de Vacaria: "DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME ."

Julgador de 1º Grau: MAURO FREITAS DA SILVA

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[1] “LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito á origem genérica: Uma distinção necessária. Afeto, Ética, Família e o novo Código Civil/coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira – Belo Horizonte : Del Rey, 2004, pág. 507/508.
[2] Ob Cit. pág. 508.
[3] BRITO, Leila Maria Torraca. Negatória de Paternidade e Anulação de Registro Civil : Certezas e Instabilidades. Revista Brasileira de Direito de Família n.º 36, jun-jul 2006, pág. 13.
 

 
  Fonte: Site do Espaço Vital - 17/10/2006

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