A certidão de nascimento,
fundamental para garantia de cidadania aos brasileiros, tem sido
sistematicamente negada a ciganos nascidos no país. Apesar da realização de
campanhas por parte do Governo federal para incentivar o registro civil de
crianças e adultos, inúmeras pessoas têm tido o direito impedido por causa
de sua origem nômade. Levantamento do Centro de Cultura Cigana mostra que,
em Juiz de Fora, há 8.735 ciganos sedentários (fixaram moradia), sendo que
cerca de três mil não possuem documentação. Um agravante é que metade dos
não-registrados seria formada por crianças, que permanecem sem o direito à
educação e serviços de saúde. A população de ignorados na cidade é
engrossada por 4.500 ciganos ambulantes que passam a cada ano pelo
município. Em todo o estado mais de cem mil seriam afetados pelo problema.
A concessão de certidão de nascimento para bebês é feita mediante
apresentação de documentação dos pais, declaração de nascido vivo emitida
pelo hospital e certidão de nascimento da pessoa que realizará o registro
(ver quadro). Como a maioria dos ciganos adultos não possui documentos, o
reconhecimento dos filhos não pode ser feito, transformando a situação em um
círculo vicioso da exclusão. A situação é complicada, ainda, pelo fato de as
mulheres seguirem a tradição de seu povo, ao realizarem os partos em casa.
“Já tivemos caso de o cartório acionar a polícia, por não acreditar no
cigano e achar que a criança poderia ter sido seqüestrada. É muita
humilhação”, reclama o presidente do Centro de Cultura Cigana, Zarco
Fernandes. Para ele, o artigo 5º da Constituição Federal, no qual todos os
brasileiros são considerados iguais perante a lei, sem distinção de
natureza, está sendo continuamente violado. “Não estamos pedindo favor,
queremos apenas o cumprimento de nossos direitos. Sem o documento primeiro
da cidadania, como vamos conseguir o restante?”
Zarco conta que a maioria dos ciganos que tem documentação obteve a certidão
ilegalmente mediante pagamento de R$ 1.500. “Isso não acontece em Juiz de
Fora, mas é comum em muitos lugares.” Ele diz, ainda, que é comum o fato de
um cigano que obteve o documento assumir a paternidade do filho de um amigo
não-registrado, para garantir que a criança obtenha a certidão de
nascimento.
Justiça
A oficial substituta do Cartório Cobucci de Registro Civil do 1º Subdistrito
de Juiz de Fora, Daniela Cobucci, conta que os tabeliães precisam seguir a
Lei de Registro Público 6.015 de 1973, que prevê que o registro de pessoas
acima de 12 anos seja feito via ordem judicial. “O juiz faz um levantamento
para garantir que essa pessoa já não tenha outra certidão.” Já no caso de
bebês, explica que é necessária a documentação dos pais. “Não podemos correr
o risco de uma pessoa ser registrada mais de uma vez.” Ela ressalta que no
Cobucci, que atende a Zona Sul, há poucos casos de ciganos. “Essa situação é
mais comum no Norte do estado e do país. Estamos abertos para orientar as
pessoas, que muitas vezes ficam inseguras para buscar apoio.”
A situação de exclusão dos ciganos foi denunciada por Zarco a órgãos de
defesa dos Direitos Humanos da Câmara Municipal, Assembléia Legislativa,
Governo federal e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Precisamos de
soluções urgentes e queremos que a propaganda enganosa feita pelo governo
para a realização do registro civil seja retirada do ar.” Ele pretende
iniciar uma campanha a fim de conseguir fundos para uma viagem a Brasília,
onde pretende pedir ajuda ao Presidente Lula.
O vereador Flávio Cheker (PT) recebeu a documentação e acatou pedido para
apurar o caso, que foi encaminhado à Comissão de Direitos Humanos da Câmara.
“Faremos os encaminhamentos necessários para buscar uma solução. Queremos
apoio de outros órgãos para conseguir levar o problema ao Governo federal.”
A Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo federal informa que o
problema já foi identificado e que ocorre por dois motivos: muitos ciganos
não têm residência fixa, e a criança acaba nascendo em uma cidade e a
procura pelo registro algum tempo depois em outra; e por causa do
preconceito em alguns cartórios. Segundo informações, cerca de 11% dos bebês
nascidos a cada ano não seriam registrados e o problema ocorre,
principalmente, entre populações tradicionais, como ciganos, quilombolas,
ribeirinhos e índios. Para solucionar o problema, o governo traça um plano
de ação direto nestas comunidades que envolverá todos os ministérios. O
trabalho deve ser lançado nos próximos meses.
Sem registro a pessoa não existe
A oficial de Projetos do Unicef, Helena Oliveira, explica que sem certidão
de nascimento as crianças não têm acesso a serviços fundamentais, como saúde
e educação. “Sem registro a pessoa não existe. Ela fica sem reconhecimento,
defesa e garantia de direitos básicos. Não pode fazer matrícula, nem tem uma
identidade para atendimento de saúde que são aspectos fundamentais na vida.
Isso desencadeia uma série de impedimentos, o que é preocupante.” Helena
afirma que nada explica o fato de alguém não ter registro, já que
concretamente existe. “As pessoas devem procurar apoio do órgão público mais
próximo para resolver o problema.”
O subsecretário Estadual de Direitos Humanos, João Batista de Oliveira,
também considera a situação preocupante. “Nunca recebemos este tipo de
demanda. Soube de alguns casos pontuais, mas não imaginei que fosse assim. A
cultura cigana tem que ser respeitada e o Brasil tem que oferecer
salvaguarda. Estamos preparados para recebê-los e ajudá-los em suas
reivindicações. Ele destaca que as crianças são protegidas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e precisam ter os direitos garantidos. “Além
de não ter acesso à educação, estes meninos e meninas passam por uma
situação muito grave que é a falta de acompanhamento do desenvolvimento e da
saúde. Temos que reverter este quadro.”
Registro civil
Gratuidade: A lei 9.534, de 10 de dezembro de 1997, estabelece gratuidade
para o registro civil de nascimento. O cartório não pode cobrar pelo
registro, nem pela primeira via da Certidão de Nascimento.
O que fazer:
Registro de adultos*: comparecer ao Cartório de Registro de Pessoas
Naturais, levando qualquer papel oficial que comprove a identidade (carteira
de vacinação, por exemplo) e apresentar duas testemunhas que possam
confirmar as informações fornecidas.
Registro de adolescentes*: se os pais são casados oficialmente, apenas um
precisa comparecer ao cartório, levando consigo a certidão de casamento. Se
não, os dois devem comparecer, com os seguintes documentos: documento de
identificação (certidão de nascimento, carteira de identidade ou de
trabalho), todos os papéis oficiais que o adolescente possua (caderneta de
vacina) e duas testemunhas que levem seus próprios documentos de identidade.
De crianças: se os pais são casados, um dos dois deve ir ao cartório,
levando a certidão de casamento. Se não, os dois devem ir e apresentar:
documento fornecido pelo hospital quando a criança nasceu e documento de
identificação dos pais.
Se no município não houver cartório, os interessados deverão procurar o
cartório da sede de sua comarca ou algum serviço itinerante organizado na
cidade e solicitar o registro.
*No caso de pessoas maiores de 12 anos, o registro só é obtido mediante
ordem judicial
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