Valor Econômico - 10/03/2009
Por Melhim Namem Chalhub *
Uma recente iniciativa governamental - a Lei nº 11.908, de 2009 - autorizou
empresas estatais a comprar debêntures de construtoras, conversíveis em
ações, e abriu novas linhas de financiamento para a construção e
comercialização de imóveis. As medidas visam explorar o notório efeito
multiplicador da indústria da construção para impulsionar a economia.
Preocupa, entretanto, o fato de a lei não exigir como requisito para a
aplicação dos recursos públicos a constituição de patrimônio de afetação
para cada empreendimento financiado, sabendo-se que esse é o mecanismo de
prevenção de riscos criado pela Lei nº 10.931, de 2004, especificamente para
as incorporações imobiliárias.
Trata-se de um mecanismo de superior eficácia, de aplicação universal, e
disso são exemplos a figura do patrimônio autônomo para negócios
específicos, regulado pelo Código Civil italiano, e a "operação de fidúcia"
do direito francês. A afetação patrimonial confere uma inigualável segurança
jurídica e econômica aos investidores e credores do negócio específico, na
medida em que limita os riscos do investimento às forças do ativo do
empreendimento e o afasta dos riscos do patrimônio geral da empresa tomadora
dos recursos. O patrimônio de afetação tem vida própria, que assegura o
prosseguimento do negócio com autonomia, mesmo em caso de falência da
empresa que o instituiu, ressalvados, naturalmente, casos de fraude.
A Lei nº 11.908, entretanto, na contramão dessa moderna política
legislativa, limitou-se a exigir a constituição de uma sociedade de
propósito específico (SPE) para cada empreendimento financiado, como se isso
prevenisse eficazmente os riscos do negócio. Ora, a SPE nada mais é do que
uma sociedade empresária como outra qualquer, de modo que, se falir,
arrastará consigo os credores para uma longa, burocrática e paciente
peregrinação judicial.
Na afetação não há esse risco, pois os artigos 31A a 31F da Lei nº 4.591, de
1964, com a redação dada pelo artigo 53 da Lei nº 10.931, exclui o
empreendimento dos efeitos da falência da empresa, assegura o prosseguimento
do negócio e o pagamento dos credores a ele vinculados. Tudo
extrajudicialmente, sem intervenção judicial.
Não há dúvida de que a SPE é útil na estruturação de parcerias, tal como o
consórcio de empresas para joint ventures, mas é ilusória a crença de que
possa assegurar a incolumidade do empreendimento e seu prosseguimento em
caso de desequilíbrio patrimonial. É que o caso da incorporação imobiliária
é especial, inclusive por envolver a economia popular e o interesse dos
adquirentes de imóveis na planta. Por isso é que a Lei nº 10.931 criou um
mecanismo próprio de prevenção de risco e estabeleceu procedimentos
específicos que asseguram a continuação da obra independentemente de
intervenção judicial, mesmo em caso de falência ou recuperação judicial da
empresa incorporadora.
Os procedimentos são simples e desburocratizantes: constitui-se a afetação
por simples averbação no registro de imóveis e controla-se o empreendimento
mediante relatórios periódicos. O empreendimento afetado é incomunicável por
definição legal, circunstância que lhe confere eficácia superior a qualquer
outra garantia, pois a incorporação permanece blindada contra riscos de
constrição por dívidas do patrimônio geral da empresa incorporadora,
inclusive em caso de falência. Nesse caso, o artigo 31F da Lei nº 4.591
confere poderes a uma comissão de representantes dos adquirentes para
prosseguir a obra e para outorgar as escrituras aos adquirentes, firmando-as
juntamente com a instituição financiadora da obra. Tudo independentemente de
intervenção judicial.
A extrajudicialidade e a implementação dos procedimentos diretamente pelos
credores conferem uma extraordinária celeridade na retomada da obra e
recuperação do crédito. Tal é a eficácia da afetação que a Lei de Falências
e Recuperação de Empresa assimilou-a incondicionalmente e ratificou de modo
explícito a imunidade da incorporação contra os efeitos da falência,
corroborando a prevalência da lei especial e consolidando a estruturação
legal que assegura a continuação da obra livre dos efeitos da falência e
mediante procedimentos extrajudiciais, conforme prevê o inciso IX do artigo
119 da Lei nº 11.101, de 2005. Diversa é a situação na SPE, na qual não são
admitidas medidas extrajudiciais para esses fins. Sua eventual falência
opera-se exatamente como a de qualquer outra sociedade empresária,
submetendo o negócio a todos os entraves próprios do processo falimentar.
No momento em que, em meio à devastadora crise atual, o governo se dispõe a
liberar recursos públicos para o financiamento da produção imobiliária, é
útil lembrar que, entre os fatos do passado recente que motivaram a lei da
afetação, estão a debacle do sistema de refinanciamento do Banco Nacional da
Habitação, extinto em 1986, os danosos efeitos da falência da maior
construtora do país, na década de 1990, e o enunciado da Súmula nº 308 do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), pela qual a hipoteca constituída pela
incorporadora em favor da financiadora, para garantia do financiamento da
construção, não produz efeito em relação dos promitentes compradores de
apartamentos. Esquecer essas lições e aplicar recursos públicos sem o
mecanismo próprio de prevenção de riscos nas incorporações imobiliárias é
uma temeridade. Afinal, gato escaldado tem medo até de água fria.
* Melhim Namem Chalhub é advogado, professor e autor dos livros "Direitos
Reais", pela editora Forense, e "Da Incorporação Imobiliária" e "Negócio
Fiduciário", pela editora Renovar.
(Jornal Valor Econômico, Seção Legislação & Tributos, 10/03/2009)
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