Uma criança de pouco mais de um ano de idade, transferida a abrigo sem
necessidade, teve o direito e a liberdade de conviver com seu pai adotivo
assegurados por decisão liminar proferida em habeas corpus, de relatoria do
ministro Villas Bôas Cueva. A decisão superou o preciosismo formal da
inadequação do registro, prática conhecida como “adoção à brasileira” ou
adoção intuitu personae, em face da consolidação dos laços familiares e do
risco de danos irreparáveis à formação da personalidade do menor.
A decisão partiu do entendimento de que a concessão da liminar traduz o
melhor interesse da criança: o direito ao lar.
Após oito meses de convivência com o homem que a tratava como filha, a
criança foi encaminhada a um abrigo institucional a pedido do Ministério
Público (MP), que apontou indícios de irregularidade do registro. O pai não
biológico, casado, registrou a criança como filha porque a mãe biológica
contou que passava por dificuldade financeira, tendo recebido ajuda do
casal.
Com pedido de liminar em habeas corpus negado na Justiça paulista, a defesa
pediu no STJ que a criança pudesse aguardar o julgamento de mérito sob a
guarda de quem a registrou.
Para tanto, sustentou que valorizar o cadastro único informatizado de
adoções e abrigos (Cuida), em detrimento do bem-estar físico e psíquico do
menor que conviveu por oito meses no âmago da sua família (desde o seu
nascimento), vai de encontro ao sistema jurídico, em especial à luz da
filiação socioafetiva, valor jurídico que não pode ser ignorado pelo
Judiciário na missão de “dizer o direito”.
“O presente envio da criança a um abrigo beira a teratologia, pois
inconcebível presumir que um local de acolhimento institucional possa ser
preferível a um lar estabelecido, onde a criança não sofre nenhum tipo de
violência física ou moral”, afirmou a defesa do pai adotivo.
Caso excepcional
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) condiciona o envio de um menor
para abrigo à violação de direitos, segundo seu artigo 98. Ou seja, quando
há ação ou omissão da sociedade ou do estado; falta, omissão ou abuso dos
pais ou responsável; ou em razão da conduta do menor. Para o ministro Villas
Bôas Cueva, nenhuma dessas hipóteses ocorreu no caso concreto, conforme a
situação fática delineada, o que torna o caso excepcional.
Ao deferir a liminar, o ministro reconheceu que “o menor foi recebido em
ambiente familiar amoroso e acolhedor, quando então recém-nascido, ali
permanecendo até os oito meses de idade, não havendo quaisquer riscos
físicos ao menor neste período, quando se solidificaram laços afetivos”.
Ele apontou precedentes do STJ no mesmo sentido (HC 221.594, rel. ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13.3.2012, DJe 21.3.2012; AgRg na
MC 15.097, rel. ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
05.3.2009, DJe 6.5.2009, e MC 18.329, relatora para acórdão ministra Nancy
Andrighi, julgada em 20.9.2011, DJe 28.11.2011).
Além disso, o ministro enfatizou em sua decisão que a adoção não existe
apenas para promover a satisfação do interesse de quem adota, mas,
sobretudo, para a formação da família da criança, com a finalidade de
possibilitar seu desenvolvimento. O relator entendeu que transferir a
criança primeiramente a um abrigo e depois a outro casal cadastrado na lista
geral, e, portanto, estranho ao processo, em nome de um formalismo
exacerbado, refoge à razoabilidade, pois “certamente não atende ao bem da
vida a ser tutelado, nem ao interesse do menor”.
Contudo, o ministro consignou que “as questões invocadas nesta seara
especial não infirmam a necessidade de análise da constituição da posse de
estado de filiação entre as partes interessadas e a efetiva instauração do
processo de adoção, que não pode ser ignorada pelas partes”. Assim,
registrou que o estudo social e a análise das condições morais e materiais
para a adoção definitiva do infante, recolhido abruptamente à instituição
social, deverão ser observados pela autoridade competente.
O número deste processo não é divulgado em razão de sigilo judicial. |