Procedimento de jurisdição voluntária - Imóvel havido por doação - Cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade

PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA - IMÓVEL HAVIDO POR DOAÇÃO - CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE - PEDIDO DE CANCELAMENTO DOS GRAVAMES - PRECEDENTES DO STJ - EXAME DO CASO CONCRETO - POSSIBILIDADE

- De acordo com a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, a regra do art. 1.676 do Código Civil/1916 deve sofrer abrandamento para a real conveniência dos interessados, principalmente pela função social da propriedade.

- Observados os contornos fáticos do caso concreto, havendo justa causa que fundamente plausivelmente a razão pela qual se pretende a revogação de cláusulas onerosas de imóvel e sua posterior venda, pode o julgador conceder ordem judicial para que se promovam o devido cancelamento dos gravames.

Apelação Cível n° 1.0024.08.176821-0/001 - Comarca de Belo Horizonte - Apelantes: Francesco Masserio Júnior e outro - Relator: Des. Alvimar de Ávila

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar preliminares e dar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 16 de setembro de 2009. - Alvimar de Ávila - Relator.

N O T A S T A Q U I G R ÁF I C A S

DES. ALVIMAR DE ÁVILA - Trata-se de recurso de apelação interposto por Francesco Masserio Júnior e outro, nos autos da ação de cancelamento de gravame que recai sob propriedade imóvel, contra decisão que indeferiu o pedido inicial (f. 59/61).

Em suas razões, os apelantes suscitam, preliminarmente, nulidade da sentença, por vício extra petita. Pugnam, ainda, pela nulidade da sentença ante a ausência de citação da mãe dos requerentes, pessoa interessada na lide. No mérito, alegam que não têm condições de usufruir do imóvel objeto da demanda, haja vista residirem em outro país. Informam que o imóvel não satisfaz economicamente nenhum dos seus três proprietários, já que no momento não se encontra alugado, não conseguindo satisfazer sequer às despesas para a sua manutenção. Afirmam que seu pai gravou o imóvel com as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade porque aquele era o lar da família, mas que, atualmente, o imóvel não atende à finalidade para a qual foi adquirido, pois, hoje, residem na Itália. Afirmam terem ciência de que, se autorizada a sub-rogação, deverão adquirir imóvel que admita ser gravado com as mesmas cláusulas restritivas constantes do bem objeto da presente ação. Trazem à colação jurisprudência deste eg. Tribunal de Justiça, corroborando suas alegações. Por fim, pugnam pelo provimento do recurso (f. 64/71).

Conhece-se do recurso por estarem presentes os pressupostos para a sua admissibilidade.

Preliminarmente, os apelantes arguem a nulidade da sentença, por vício extra petita, sob o argumento de que a i. Julgadora de 1ª instância, ao proferir a decisão hostilizada, não teria se atentado ao fato de terem restringido seus pedidos inaugurais, quando da apresentação da emenda à inicial (f. 49/53).

O defeito apontado pelos apelantes, como se sabe, ocorre quando o juiz decide pedido diverso, ou com fundamento diverso daquele pleiteado. Esclarece Humberto Theodoro Júnior (in Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1990, v. I, p. 557):

"A sentença extra petita incide em nulidade porque soluciona causa diversa da que foi proposta através do pedido. E há julgamento fora do pedido tanto quando o juiz defere uma prestação diferente da que lhe foi postulada, como quando defere a prestação pedida, mas com base em fundamento jurídico não invocado como causa do pedido na propositura da ação. Quer isto dizer que não é lícito ao julgador alterar o pedido, nem tampouco a causa petendi".

Da análise da emenda à inicial apresentada às f. 49/53, é possível verificar que, apesar de haver a modificação do nome dado à ação originária (f. 02/06), não há modificação substancial dos fatos descritos e dos pedidos requeridos em relação aos da peça de ingresso.

Ademais, vale destacar que, em se tratando de jurisdição voluntária, em cujo procedimento não se está obrigado a observar critério de legalidade estrita, o julgador pode adotar, em cada caso, a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, de acordo com critérios próprios do poder discricionário, inexistindo, por isso, vício de julgamento (decisão extra petita), como pretendem os apelantes.

Registre-se ainda que a i. Magistrada esteve atenta a todas as pretensões formuladas, indeferindo não só o pedido de cancelamento dos gravames que recaem sob o imóvel, mas também o pedido de autorização de alienação do bem e consequente sub-rogação dos gravames (f. 57/61).

Assim, ao contrário do que sustentam os apelantes, não houve julgamento extra petita, razão pela qual se rejeita a preliminar.

Da mesma forma, não ocorre a alegada nulidade da sentença por ausência de citação da Sra. Maria de Lourdes Vinagre da Silva, mãe dos requerentes e proprietária de 50% (cinquenta por cento) do imóvel descrito na inicial.

É de se ressaltar, inicialmente, que, apesar de não haver lide nos processos de jurisdição voluntária, a decisão prolatada nesse procedimento poderá declarar ou constituir uma nova relação jurídica que envolva ou produza efeitos em relação a terceiros.

Exatamente por isso, torna-se obrigatória a citação, sob pena de nulidade, das pessoas detentoras de interesses que possam ser atingidos pela decisão a ser proferida em juízo, consoante art. 1.105 do Código de Processo Civil.

Contudo, no caso, observa-se que as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, sob as quais se pretende o cancelamento, recaem apenas sobre as frações ideais de propriedade dos autores, que, juntas, totalizam apenas 50% (cinquenta por cento) do imóvel (f. 10/15).

Ademais, verifica-se que o pedido inicial dos autores se restringe à desconstituição das mencionadas cláusulas restritivas, que, repita-se, recaem apenas sobre a parte do imóvel pertencente aos autores, e à autorização judicial para que possa haver a venda apenas daquela fração gravada (f. 05), não atingindo, assim, a porção do imóvel pertencente à mãe dos requerentes.

Assim, em que pese tratar-se de bem comum e indivisível, tem-se que a ausência de intervenção da Sra. Maria de Lourdes Vinagre da Silva na presente ação não lhe trouxe prejuízos que justificassem a nulidade do processo.

É que eventual procedência dos pedidos inicias, seja para determinar a desconstituição dos gravames que recaem sobre a fração do imóvel que pertence aos autores, seja para autorizar a venda da fração gravada com a consequente sub-rogação daquelas restrições, não produzirá efeitos capazes de modificar o direito de propriedade da mãe dos autores, razão pela qual, tem-se que, não havendo prejuízo, não há de se falar em nulidade do processo.

Por todo o exposto, rejeita-se, também, a presente preliminar.

Passa-se ao exame do mérito do recurso.

Cinge-se a controvérsia em torno da possibilidade de serem ou não afastadas as cláusulas restritivas gravadas em parte do imóvel doado aos requeridos.

A teor do art. 1.676 do Código Civil anterior, sob cuja vigência se operou a doação gravada, apura-se que:

"A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade".

Por seu turno, o art. 1.677 do mesmo Código dispõe que:

"Quando, nas hipóteses do artigo antecedente, se der alienação de bens clausulados, o produto se converterá em outros bens, que ficarão sub-rogados nas obrigações dos primeiros".

Já o Código Civil atual, apoiado no art. 1.911, parágrafo único, inova ao admitir a alienação de bens clausulados, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, devendo ser convertido o produto da venda em outros bens, sobre os quais incidirão as mesmas restrições apostas aos primeiros.

Vê-se, portanto, que a nova lei substantiva retrata a evolução que já vinha sendo feita pela doutrina e jurisprudência, abrindo-se a possibilidade para que não permaneçam rígidos os preceitos arcaicos e estatuídos no antigo Código Civil.

Neste ponto, registre-se que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a regra do art. 1.676, CC/16, com correspondência ao atual art. 1.911 do CC, deve ser avaliada com temperamento, uma vez que a proibição de alienação do bem, em determinados casos, pode ser contrária à finalidade para a qual foi criada (STJ, 4ª Turma, REsp nº 10.020-SP, Rel. Min. César Asfor Rocha, j. em 09.09.1996, RSTJ 90/226).

No citado precedente, o Ministro César Asfor Rocha adverte que:

"Reitero que reconheço a força restritiva que a regra do art. 1.676 do Código Civil encerra e sei que o legislador, ao concebê-la, teve motivações nobres ao procurar assegurar, para a entidade familiar, uma base econômica e financeira segura e duradoura. Todavia, pelas razões inicialmente expostas, destaquei que não se pode e não se deve interpretá-la tão austeramente, visto que a vida é muito mais rica que a acuidade que o espírito premonitor dos elaboradores de leis pode captar, e a sua energia está, sempre, a criar situações novas que não se amoldam com confortável harmonia às previsões que o direito positivo congrega".

Dessa forma, concluiu-se que o objetivo de preservação das cláusulas restritivas gravadas em imóvel deve sofrer abrandamento para a real conveniência dos interessados, principalmente pela função social da propriedade.

No presente caso, observa-se que as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade impostas ao bem doado aos apelantes (f. 10/12) teve por finalidade a proteção dos donatários, que eram menores à época da doação, visando ampará-los econômica e financeiramente.

Contudo, nos tempos atuais, pode-se constatar que os donatários, ora apelantes, são maiores e capazes, não dependem do imóvel para moradia nem sustento próprio, inexistindo razões para se manter o gravame.

Registre-se ainda, que os apelantes não têm interesse, sequer, de permanecer na cidade onde está localizado o imóvel em questão. Aliás, possuem residência e domicílio na Itália, são casados e proprietários de uma empresa naquele país (f. 19/31).

Assim, apesar de considerar plausível e de boas intenções a doação realizada com cláusula de inalienabilidade, há situações como as evidenciadas acima que impõem seja mitigada a aplicação da norma contida no art. 1.676 do Código Civil/1916, em atenção aos princípios da livre circulação dos bens e da função social da propriedade.

Ressalte-se ainda que a intenção do doador, ao gravar o imóvel com tais cláusulas restritivas, era beneficiar e não prejudicar os donatários, que, atualmente, pretendem retirar os ônus que recaem sobre o imóvel para, posteriormente, avaliar a possibilidade de alienar esse bem e, com o produto da venda, adquirir outro capaz de garantir-lhes plena fruição.

Por todo o exposto e atento ao fato de que o processo é instrumento de realização prática de justiça e do direito e que deve, por seu meio, fazer valer a realidade de nossos dias, desprendendo-se de normas arcaicas e sem finalidade objetiva, tem-se que, no caso em análise, não há qualquer óbice ao deferimento do pedido de cancelamento dos gravames existentes sobre a fração do imóvel pertencente aos autores, visto que já não subsistem motivos e razões para a sua manutenção.

Nesse sentido, esta eg. Câmara Cível já se manifestou:

"Jurisdição voluntária - Imóvel - Cláusulas restritivas - Maioridade do donatário - Mitigação dos ditames previstos no art. 1.911 do novo Código Civil de 2002. - As restrições e determinações constantes do art. 1.676 do nosso antigo Código Civil de 1916 devem ser mitigadas para serem adequadas à realidade atual em que vivem os beneficiários, devendo-se avaliar o caso concreto para fixar a aplicação ou não das diretrizes estampadas no retromencionado artigo, mormente diante da nova e moderna construção pretoriana acerca do tema, que se efetivou através da redação do art. 1.911 do atual Código Civil de 2002, onde se abriu a possibilidade de não permanecerem hígidos os preceitos antissociais e antieconômicos estatuídos no antigo Código Civil. [...]" (TJMG, 12ª Câmara Cível. AC nº 1.0024.95.101857-1/001, Rel. Des. DOMINGOS COELHO, j. em 19.01.2009).

"Declaratória - Cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade - Possibilidade de cancelamento. - É perfeitamente possível a retirada dos gravames de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade em atenção ao princípio da função social da propriedade, não mais se justificando a perpetuação da vontade do titular do patrimônio para além de sua vida quando impede a plena fruição desta" (TJMG, AC nº 2.0000.00.433261-2/000, Rel. Des. Domingos Coelho, j. em 19.05.2004).

Tal entendimento coaduna-se, ainda, com a jurisprudência dominante deste Tribunal, senão vejamos:

"Jurisdição voluntária - Imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade vitalícia - Cancelamento via autorização judicial - Admissibilidade - Inexigibilidade de observância da legalidade estrita. - Há possibilidade de se mitigar a aplicação da norma contida no art. 1.676 do CC/1916 em face das especificidades do caso concreto, aliado ao fato de que nenhuma regra de direito é absoluta" (TJMG, 6ª Câmara Cível, AC nº 1.0702.05.263200-8/002, Rel. Des. Edilson Fernandes, j. em 14.04.2009).

"Ação declaratória. Cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Possibilidade de cancelamento. - É cediça a retirada dos gravames de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade em atenção ao princípio da função social da propriedade, não mais se justificando a perpetuação da vontade do titular do patrimônio para além de sua vida, ainda mais porque há prova nos autos de que os donatários não dependem economicamente do bem, portanto injustificável a determinação de compra de novo imóvel com os mesmos gravames" (TJMG, 13ª Câmara Cível, AC nº 1.0384.07.054346-5/001, Rel. Des. Francisco Kupidlowski, j. em 20.11.2008).

"Apelação - Doação - Cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade - Cancelamento - Possibilidade - Preceitos constitucionais. - No direito contemporâneo, a vitaliciedade das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, conforme regra insculpida no art. 1.676 do CC/16, não deve ser objeto de uma interpretação a ensejar o absolutismo proibitório, em face dos preceitos constitucionais que asseguram o direito de propriedade e impõe a sua finalidade social" (TJMG, 13ª Câmara Cível, AC nº 2.0000.00.499522-2/000, Rel. Des. Fábio Maia Viani, j. em 21.09.2006).

Pelo exposto, rejeitam-se as preliminares e dá-se provimento ao recurso para reformar a r. sentença hostilizada e determinar o cancelamento das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade que incidem sobre a fração do imóvel que pertence aos autores.

Custas, ex lege.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Saldanha da Fonseca e Domingos Coelho.

Súmula - REJEITARAM PRELIMINARES E DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.


Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico do TJMG - 22/06/2010.

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