Tabelião Antônio Albergaria discursa na abertura do 15º Encontro de Notários e Registradores de Minas Gerais

 

"Em uma noite de fevereiro do corrente ano, eu interrompi a leitura que estava fazendo do livro "A Guerra do Fim do Mundo", de Mário Vargas Llosa, para atender a um telefonema. Era do admirável, admirado e culto notário Dr. João Theodoro da Silva, para comunicar-me que a SERJUS de Minas Gerais havia criado uma comenda, identificando-a com o meu nome. Inicialmente, pelo inesperado da notícia, não entendi bem o que ele me noticiava. Sentindo ele a minha dúvida, esclareceu-me que não era uma comenda a ser a mim entregue, mas sim uma comenda que representaria o reconhecimento público da SERJUS ao valor pessoal e profissional daqueles que, por qualquer motivo ou forma, tendo compreendido o valor dos serviços cartorários, seriam agraciados com tal comenda que elevaria o meu nome. Disse-me, mais, que a SERJUS havia programado para meados de março uma solenidade para registrar esse acontecimento, e que ele, em nome da SERJUS, estava antecipadamente me convidando a participar de tal cerimônia. Como de costume, por formação e por princípio, procuro não alongar telefonemas interurbanos que recebo. Ainda impressionado com o relato e ante seus esclarecimentos de que eu iria receber a comunicação oficial sobre a agradável notícia e o convite expresso da SERJUS, prometi-lhe estar presente à solenidade. A inusitada notícia não só interrompeu a leitura do que aquele escritor relatava sobre um fato histórico da vida social e política brasileira, ocorrido no interior da Bahia, logo no início do período republicano, como também me levou a perder o sono. Eu, não mais praticando serviços notariais por força da aposentadoria compulsória, a qual, por ser compulsória, foi-me imposta há mais de dez anos, residindo fora de Minas Gerais, indaguei a mim mesmo: por que a SERJUS identificou tal comenda com o meu nome, já que não mais estou em atividade cartorária, quando na classe existiram e existem outros nomes que pela cultura, altivez de atitudes, honestidade profissional e projeção intelectual eram e são mais credores de tal honraria? Permitam-me destacar o nome de um cartorário mineiro, que no passado enobreceu com o seu saber a classe a que pertenceu: Jarbas Pires Ferreira.

Perturbado com a comunicação, recorri ao Aurélio à procura do significado do termo "comenda" e dentre vários encontrei este: "condecoração ou distinção de ordem honorífica". Isto bastou para que eu voltasse a indagar: por que tal honraria levar o meu nome, se já estou há mais de dez anos afastado das atividades cartorárias? Quando as exerci, pratiquei erros e falhas, que divulguei publicamente na "Minha Vivência no Notariado Paulista". E, neste indagar solitário, íntimo, e desperto pela insônia, não encontrei um motivo a justificar a distinção a mim concedida pela SERJUS de Minas Gerais. Entre a comunicação telefônica e o amanhecer do dia seguinte, eu não mais dormi, tampouco consegui continuar a leitura da saga de Antonio Conselheiro. Será que o prenome "Antonio" se presta a sagas? Fiquei aguardando a comunicação da SERJUS. Quando a recebi, soube que a honraria "foi criada através de voto direto e unânime dos membros da Diretoria da SERJUS, em reunião realizada no último dia 06 de fevereiro, e esta registrada em ata". Em seguida, há o esclarecimento: "A escolha do seu nome, prezado Tabelião, está alicerçada na importância de sua trajetória profissional para o desenvolvimento e fortalecimento das atividades notariais e de registro no País. Seus estudos e obras publicadas - entre elas o notável livro "Minha Vivência no Notariado Paulista - de 1939 a 1989" - ajudam a qualificar os notários em atividade, destacando o exercício responsável e ético da profissão". Valeu, portanto, ter publicado minha vida de cartorário no meu Estado de São Paulo, pois em Minas Gerais uma entidade que congrega notários e registradores sentiu a autenticidade do meu ideal, que em palavras contraditórias registro no pórtico daquele livro. O sonho e a realidade, aquele sonhado e esta vivida, confundem-se nesta comenda. O meu sonho confunde-se com a realidade que esta comenda proclama. Alegro-me e orgulho-me de ter meu nome identificando-a. Não posso deixar de publicamente, com honestidade, sinceridade e até mesmo com uma pitada de vaidade, agradecer à SERJUS em Minas Gerais pela sua instituição e pela finalidade de sua outorga aos primeiros agraciados. Aos que hoje a recebem como cartorários recomendo: amem, respeitem e valorizem as atividades cartorárias, colocando nelas seu caráter e sua fé. Aos que a recebem não sendo cartorários almejo que, sentindo o valor dos serviços cartorários, nas suas várias atividades, lutem e tudo façam para que os cartorários brasileiros tenham o merecido valor, respeito e consideração, pois ser cartorário, em qualquer de suas atividades específicas, é ser um profissional do direito, conceituado e responsável por seus serviços. Os termos "cartório" e "cartorário" não se prestam ao ridículo que alguns teimam em elevá-los. Hoje, vendo meu nome inscrito nesta comenda criada pela SERJUS, aumenta a minha responsabilidade de continuar a lutar por uma melhoria das atividades cartorárias na sua generalidade. Atualmente não tenho cartório. A aposentadoria compulsória privou-me daquele que na capital de São Paulo instalei, organizei e com meu trabalho valorizei. Num paradoxo, criei outro trabalho e nele por ato próprio investi-me. Está imune de qualquer interferência de quem quer que seja, a não ser dos cartorários estudiosos e capacitados. Chama-se "Boletim Cartorário". Através dele venho sendo regiamente pago pela forma mais gratificante por meus leitores, quando me chamam de "mestre", título que me é conferido pelo diploma de professor normalista, embora primário. E doravante, por mercê da SERJUS, passo a ser comendador-mestre ou mestre-comendador. Concluindo este preâmbulo da exposição, não me alongarei no motivo da minha presença a esta solenidade, para entrar logo no epílogo ou encerramento, para gáudio daqueles que até aqui suportaram este extenso intróito.

Duas palavras bastam para estabelecer o comportamento ético de todo cartorário, qualquer que seja a espécie de atividade que exerça. Por rimarem, formam elas um poema, a dignificar o ofício do cartorário: honestidade e lealdade. Honestidade para consigo mesmo, só fazendo o que pode fazer e sabe fazer pela forma mais correta possível, de modo que o produto de seu trabalho não resulte no comprometimento do direito e quem quer que seja. Lealdade, impondo que o cartorário só faça o que pode fazer, da maneira mais eficiente possível. Para tanto, deve não só empregar dedicação na execução de seus serviços, como também ter consciência dos efeitos do ato por ele praticado para as partes envolvidas, assim como para a coletividade, esta no sentido mais amplo. Na lealdade está implícita a imparcialidade do profissional consciente e responsável. Em toda a minha vida de cartório, eu confesso, a dar valor à honraria que os senhores cartorários mineiros através de seu órgão representativo acabam de me conceder, não me lembro de haver praticado um só ato que possa me comprometer ou do qual eu possa me envergonhar. Entretanto, um há que recordar neste instante, para justificar o que recomendo como identificador do valor do cartorário honesto, leal e dedicado aos serviços que por lei lhe são atribuídos: só praticar o que pode praticar de forma consciente e responsável. Num passado já bem distante, em Parnaso, fui procurado por um cidadão austríaco, para lavrar uma escritura de venda e compra de sítio de sua propriedade, situado num bairro do distrito. Na época, por ato de força, a Áustria havia sido anexada à Alemanha, e os austríacos, por esse mesmo ato de força, passaram a ser considerados alemães. Havia sido editado no Brasil um rigoroso preceito de lei, impedindo que os alemães residentes no território brasileiro alienassem seus bens imóveis aqui situados. O decreto registrava o motivo de tal proibição: pagar ao Brasil indenização pelos prejuízos sofridos em conseqüência de agressões aos nossos navios mercantes pelos chamados navios do Eixo, identificando como inimigos os alemães, os italianos e os japoneses, contra os quais estávamos em guerra. A primeira dúvida que me assaltou foi: poderia ou não lavrar tal escritura? E quais as conseqüências que adviriam da decisão de lavrar ou não lavrar o ato de transmissão do sítio pertencente ao vendedor austríaco? O que sabia eu na época sobre o que era Direito Internacional Público e Privado, matérias de que só vim a ter conhecimento quando fiz o curso de Direito? Na solidão de Parnaso, sem cultura jurídica alguma, mas ciente de que minha decisão poderia comprometer interesses e direitos das partes, decidi formular minha primeira e única consulta no decorrer de minha vivência no notariado paulista. Confesso que expus meu entendimento e minha dúvida sem embasamento jurídico. Na ocasião eu era um simples professor normalista, ameaçado de ser convocado para a guerra, por ser reservista de segunda categoria. Coloquei o problema como consulta ao então Juiz de Direito da Comarca de Pompéia, cujo nome aqui declino, com respeito, admiração e saudade: Dr. Antonio da Rocha Paes. Dias depois, pelo correio veio a solução: poderia lavrar a escritura, como eu entendia poder, embora estivesse em dúvida. O Juiz, encerrado sua decisão, na época encheu-me de orgulho, pois registrava tal expressão o valor de minha atividade profissional: "Restitua-se ao consulente os documentos de fls. e fls., cuja dedicação ao trabalho mais uma vez temos oportunidade de registrar". Jovem como eu era, esta afirmativa emanada de um magistrado encheu-me sim de orgulho, mas impôs-me a obrigação de ser sempre, e cada vez mais, estudioso; só praticar o que poderia praticar, e praticar bem o que sabia praticar. Rememoro esta passagem de minha vida passada de notário, não para destacar um comportamento profissional meu, na prática de um ato que deveria formalizar num passado distante, mas sim para aceitar, honrado e emocionado, a honraria que ora recebo da SERJUS de Minas Gerais, dando o meu nome a esta comenda. E aqui reafirmo a todos os cartorários: não façam o que não podem fazer, e só façam o que sabem fazer com consciência e responsabilidade. Adotei como norma profissional a recomendação de Plínio, o Moço: não faz o que duvidares. Estes dois pilares - só fazer o que pode; e fazer o que sabe - dão suporte às atividades cartorárias. Venho lutando, através do Boletim Cartorário, para agregar e solidificar estes dois pilares das atividades cartorárias com o concreto e com o cimento do estudo. Antes de indagar para saber fazer, recomendo a todo cartorário responsável que estude. Se não sabe o que deveria saber, não revele sua ignorância, formulando indagações, não raro mal formuladas, a respeito daquilo que por obrigação profissional lhe cabe saber, já que o legislador o identifica como profissional do direito. Com constância eram feitas por telefone consultas de cartorários, assinantes do Diário das Leis Imobiliário e leitores do Boletim Cartorário. Para o bem daqueles que consultam, adotei o comportamento de indagar do consulente qual seu entendimento sobre o assunto pesquisado, forçando-o e estimulando-o a expor o que sabe. Com tal agir, diminuíram as consultas telefônicas, podendo ser conseqüência de uma destas opções: deixaram de ler o Boletim Cartorário, cancelando a assinatura do Diário das Leis Imobiliário; ou estão estudando, a fim de solucionar seus problemas profissionais, o que certamente aprovo. O Boletim Cartorário não existe para esclarecer dúvidas através do telefone. Existem sim como órgão estimulador de estudo pelos cartorários responsáveis, sejam eles agentes delegados ou prepostos. Hoje o Boletim Cartorário é algo mais: veículo de divulgação de valores existentes na classe cartorária brasileira. Minha admiração aos que, ainda em atividade, lutam pela valorização dos serviços cartorários. E aos profissionais que os executam com consciência e responsabilidade.

Finalizo esta exposição, registrando meus sinceros, autênticos e comovidos agradecimentos à SERJUS, por me haver proporcionado a emotiva alegria de ainda vivo ver meu nome inserido em uma comenda criada para homenagear-me, homenageando aqueles que valorizam os serviços cartorários como um todo útil e necessário à coletividade. Encerro a peroração: sou humano e, como tal, sou vaidoso. Vocês, cartorários mineiros, através de seu expressivo órgão de classe, deram-me a certeza, a segurança e a convicção de que em Minas Gerais não nasceu somente o sonho de liberdade de nossa pátria, mas também aqui vivem homens profissionais cartorários que sentem, como os do passado, os anseios de liberdade de uma classe a que um dia pertenci. E tiveram a ousadia, admirável para mim, de colocar meu nome em uma comenda, estando eu ainda vivo. Numa noite de fevereiro do corrente ano, um coração mineiro levou-me a perder o sono, quando me notificou do que ora ocorre. Ainda perplexo, ainda assustado, ainda atemorizado, ainda preocupado, eu termino aqui esta peroração: muito obrigado à SERJUS, muito obrigado aos Cartorários Mineiros."

Antônio Albergaria Pereira


Fonte: SERJUS - 16/03/2006