Clipping - Supremo abole a exigência da certidão negativa de débito

Certo é que o Estado não pode se valer de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles - e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional -, constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso

Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas, advogado especializado em Direito Tributário, assessor jurídico da Associação Comercial de Minas Gerais

Nas hipóteses de transferência para o exterior, registro ou arquivamento de contrato social, alteração contratual e distrato social perante o registro público competente, exceto quando praticado por microempresa, conforme definida na legislação, era exigida a certidão negativa de débito (CND), por força do artigo 1º, incisos I, III e IV, e §§ 1º, 2º e 3º, da Lei 7.711/88.

O Supremo Tribunal Federal, examinando essa exigência, decidiu pela sua inconstitucionalidade ao argumento de que se trata de uma “espécie de sanção política e que isso cabe apenas ao fisco” (Adis 173 e 394, respectivamente ajuizadas pela Confederação Nacional da Indústria e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil).

Na prática isso significa que o Estado não pode se valer desse expediente para forçar, coagir o contribuinte a quitar os seus débitos fiscais, porque a Fazenda tem suas vias normais para exigir o pagamento de débitos e, por isso, não pode “cobrar tributos por uma via oblíqua”. Para o ministro do STF Marco Aurélio, “qualquer ato que implique forçar o cidadão a recolhimento de imposto é inconstitucional”.

Não é a primeira vez que o STF trata dessa questão. Em outros julgados, em que o litígio envolvia a discussão em torno da possibilidade constitucional de o poder público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culmina, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita, o entendimento sempre foi o de que o Poder Público dispõe de meios legítimos que lhe permitem tornar efetivos os créditos tributários.

Hoje já se firmou orientação jurisprudencial consubstanciada em súmulas (70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas. Esse entendimento – cumpre enfatizar – tem sido observado em sucessivos julgamentos proferidos pela Suprema Corte, quer sob a égide do anterior regime constitucional, quer em face da vigente Constituição.

É de se enfatizar que a circunstância de não se revelarem absolutos os direitos e garantias individuais proclamados no texto constitucional não significa que a administração tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte, impondo-lhe exigências gravosas, que, não obstante as prerrogativas extraordinárias que (já) garantem o crédito tributário, visem, em última análise, a constranger o devedor a satisfazer débitos fiscais que sobre ele incidam.

Certo é que o Estado não pode se valer de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles – e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional –, constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso.

Hugo de Brito Machado, em sua obra Sanções políticas no direito tributário, repudia esse comportamento estatal, por sua conotação arbitrária e inadmissível e aqui censurado. Em um Estado Democrático de Direito, qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição.

Poderíamos aqui enumerar alguns exemplos mais corriqueiros dessas chamadas sanções políticas, como a apreensão de mercadorias sem que a presença física destas seja necessária para a comprovação do que o fisco aponta como ilícito; o denominado regime especial de fiscalização; a recusa de autorização para imprimir notas fiscais; a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes; a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte; a suspensão e até o cancelamento da inscrição do contribuinte no respectivo cadastro, entre outros.

Tais práticas são flagrantemente inconstitucionais, principalmente porque implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, e, também, porque configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência é ou não legal.

Com efeito, se com a imposição de sanções menos gravosas, e até mais eficazes (como a propositura de medida cautelar fiscal e ação de execução fiscal), pode o Estado realizar o seu direito à percepção da receita pública tributária, nada justifica validamente a imposição de sanções indiretas como a negativa de fornecimento de certidões negativas de débito, ou inscrição em cadastro de devedores, o que resulta em sérias e graves restrições ao exercício da livre iniciativa econômica, que vão da impossibilidade de registrar atos societários nos órgãos do Registro Nacional do Comércio até a proibição de participar de concorrências públicas.

A decisão, em apreço, ainda não teve a abrangência que seria de se esperar, porque não afastou a exigência em licitações, mas é muito importante o julgado, porque abre um precedente que permitirá aos contribuintes que se sentirem lesados em seus direitos questionarem essa exigência de CND na hipótese de licitações, porque ficou sinalizada a possibilidade de no futuro ser ampliada essa proibição em outras situações em que se exige a malfadada certidão.


Fonte: Jornal "Estado de Minas" - Caderno Direito & Justiça - 15/12/2008.

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