Mateus Colpo
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Tem-se como pressuposto que as atividades notariais e registrais são
serviços de natureza técnica destinados a garantir a segurança jurídica. Com
cada vez mais freqüência, eles revelam-se dinâmicos e multidisciplinares,
requisitando dos profissionais que os exercem conhecimentos e compreensões
de diversas searas.
Por outro lado, é eloqüente a crítica ao custo do Estado na vida do cidadão,
manifestada sobremaneira através da burocracia que tem, para muitos, o maior
destaque nos serviços desempenhados pelas serventias notariais e registrais
(Jornal do Senado, p. 8-9, ed. 09 a 15 de fevereiro de 2009).
Diante desse contexto, pensamos que um dos grandes desafios dos serviços
notariais e registrais é conciliar o binômio: segurança jurídica x
desburocratização.
Como regra geral aplicável aos cancelamentos a serem efetuados no Registro
de Imóveis, o artigo 250 da Lei 6.015/73 determina que o cancelamento será
feito: i) em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado; ii) a
requerimento unânime das partes que tenham participado do ato, com as firmas
reconhecidas, ou, ainda, iii) a requerimento do interessado, instruído com
documento hábil.
De pronto, pela lógica e com base em normas processuais e hierárquicas,
destaca-se que para cancelar um ônus ou uma ordem emanada por uma autoridade
judiciária, como regra, é necessário que o mesmo juízo, ou instância
superior, em atuação recursal, determine o cancelamento daquela.
Assim, diante das hipóteses aventadas no artigo 250, inicialmente apontamos
que o primeiro item - cumprimento de decisão judicial - se aplica ao caso em
tela.
Na sequência, considerando a relevância e o campo de atuação da qualificação
registral, cabe considerar a forma que a decisão judicial que determina o
cancelamento deve revestir.
O artigo 221 da mesma Lei nomina os títulos considerados suscetíveis de
serem registrados/averbados e de produzirem os efeitos legais. O último
inciso do comando menciona as cartas de sentença, formais de partilha,
certidões e mandados extraídos de autos de processo. Para a finalidade de
proceder a cancelamentos, evidenciam-se as certidões e mandados, por sua
natureza e definição.
Assim, ousamos dividir e classificar os cancelamentos de restrições e outras
determinações judiciais em dois aspectos: material e formal. Material, no
sentido de encontrar e identificar de quem seria a legitimidade ativa para
provocar a prática do ato, e formal, com o escopo de identificar o
instrumento que a determinação deve assumir para atingir os fins colimados.
Na ótica material, temos que à autoridade que deu origem a inclusão da
anotação incumbe promover o seu cancelamento. Para que essa decisão tenha
forma legal e possa atingir os efeitos desejados, deve-se revestir em um
mandado ou certidão do comando extraído do feito judicial, respondendo ao
aspecto formal.
Na seqüência, outras questões surgem. Destacamos: a) a decisão que determina
o cancelamento deve estar, impreterivelmente, transitada em julgado? b) se a
autoridade judicial que determinou a inscrição do ônus tem circunscrição
diversa da comarca do cartório destinatário, será necessário que a ordem
contenha mais elementos? c) na hipótese de o cancelamento ter sua
determinação/solicitação forma diversa da prevista no artigo 221 da LRP,
teria o registrador sustentação para insurgir-se contra a medida?
Quanto à primeira indagação, em que pese o artigo 259 da Lei 6.015/73 ser
categórico, ao afirmar que o cancelamento não pode ser feito em virtude de
sentença sujeita a recurso, nos parece que a resposta para cancelamentos de
penhoras e outras constrições judiciais não pode ser afirmativa. Gilberto
Valente Silva pondera que o cancelamento de ato de registro, consoante
artigos 250, I, e 259 da Lei 6.015/73, exige sentença transitada em julgado.
No entanto, obtempera o saudoso mestre que tais dispositivos referem-se aos
registros de transmissões da propriedade, num primeiro plano, a ressalvar as
decisões que, reconhecendo e declarando que tal registro que foi feito em
fraude à execução é nulo e, em conseqüência, deva ser cancelado.
Processualmente, sentença é a decisão final do magistrado que julga o que o
autor da ação pede. A sentença tem transito em julgado, fazendo lei entre as
partes, tornando o conteúdo da sentença imutável. O mesmo pode ocorrer com o
acórdão. No entanto, muitas vezes o juiz decide incidentes processuais, tais
como a manutenção ou não de penhora. E, se em uma decisão interlocutória o
juízo entender que uma penhora deva ser cancelada, expedirá um mandado (que
não será uma sentença, pois não julgou o mérito da ação, e por conseqüência,
não transitará em julgado). Assim, nesses casos não cabe ao juízo certificar
o trânsito em julgado da decisão interlocutória (porque impossível), mas que
não seria de todo mal se constar do mandado que contra a decisão não foi
interposto recurso no prazo processual. (p. 203-206).
O segundo ponto perquire se as ordens oriundas de juízes de comarcas
diversas do registrador destinatário do comando permanecem com os mesmos
requisitos ou seria necessário alguma complementação? Ou seja, em virtude de
serem atos oriundos de outra comarca, seria necessário que tal comando
viesse através de carta precatória.
O artigo 200 do Código de Processo Civil determina que “os atos processuais
serão cumpridos por ordem judicial ou requisitados por carta, conforme hajam
de se realizar dentro ou fora dos limites territoriais da comarca.” O artigo
201 do mesmo diploma arrola as três espécies de carta: de ordem, quando o
juiz for subordinado ao tribunal deprecante; rogatória, quando o deprecado
for autoridade judiciária estrangeira; precatória, nos demais casos.
Na lição de Teodoro Júnior, compete o juiz dirigir e determinar os atos que
as partes e serventuários da justiça deverão praticar, quando sob sua
jurisdição territorial. Quando necessitar a realização da prática de algum
ato processual que deva se dar em outra comarca, deverá requisitá-lo por
carta a autoridade judiciária competente. Através das cartas há um
intercâmbio e uma colaboração entre dois juízos, no mister de o processo ter
a seqüência legal (p. 252).
Acquaviva define a carta precatória como sendo o ato processual pelo qual um
juiz requisita de outro, sediado em outra comarca, a realização de
diligências. A carta precatória é enviada somente de juiz para juiz; às
autoridades administrativas são remetidos mandados, ofícios e alvarás (p.
292).
Negrão (p. 320) destaca que a própria legislação processual algumas vezes
dispensa a necessidade de os atos serem cumpridos por carta precatória, tais
como a situação do artigo 230 do CPC, que dispensa carta precatória para
citação em comarca próxima; na Justiça Federal, o fato de o Oficial de
Justiça poder praticar atos em todas as comarcas do Estado (LOJF 42); a
possibilidade de dispensa da carta precatória para avaliar bens
inventariados (artigo 1.006 do CPC); possibilidade de ser substituída por
qualquer outro meio idôneo de comunicação no Juizado Especial (artigo 13,
parágrafo segundo, Lei 9.099/05) (p. 320).
Melo Jr. ensina que a interpretação hodierna do artigo 250 da LRP deve
flexionar a rigidez da letra, bafejando-a com o espírito da efetividade que
ora anima, mundialmente, a prestação jurisdicional (p.593).
As normas positivas direcionadas à seara registral não fazem qualquer
referência sobre o fato de os títulos apresentados serem da comarca do
Registro ou não. O que, aliás, não faria nenhum sentido se tivesse previsto,
dada a sistemática registral. Na mesma linha, a legislação processual não
elegeu a carta precatória como a forma que a manifestação judicial deve
assumir quando destinada a produzir efeitos em instâncias e repartições não
judiciais, esteja o destinatário da manifestação situado na mesma comarca ou
não.
A legislação registral, com intuito de normatizar o procedimento, indicou os
títulos com acesso ao registro. Cada documento referido no artigo 221 da LRP
traz em seu bojo conceitos e fundamentações próprias. Nela, não fez
distinção acerca da localização dos autores da elaboração dos títulos.
Quanto à qualificação do título apresentado a registro, questiona-se se
caberia ao registrador de imóveis apresentar óbice a prática do ato se o
comando não tiver a forma dos títulos arrolados no artigo 221.
A qualificação registral, manifestada no caso através do exame do título
apresentado, tem sólida doutrina no sentido de que o registro de imóveis
deve proceder à qualificação registral tanto de títulos extrajudiciais
quanto judiciais. No exame destacam-se os aspectos da legalidade e validade
do documento/título apresentado para registro, extraídos da análise dos
requisitos extrínsecos e formais do título. Assim, seja tenha o título
apresentado origem judicial, extrajudicial ou administrativo, todos estão
sujeitos à qualificação registral.
Por fim, conclui-se que, independente de se tratarem de comarcas diversas, o
mandado judicial ou a certidão permanecem como título hábil e soberano para
a prática do ato determinado, quer tenham ou não a mesma origem do juízo que
determinou a inscrição do ônus, entende-se que, estando tal entendimento
respaldado no ordenamento jurídico-registral, cabe a qualificação dos
títulos.
Objetivamente, tem-se que os títulos com vistas a cancelar restrições
judiciais devem:
- ser, como regra, os documentos tipificados no artigo 221 da Lei 6.015/73,
quais sejam, mandado judicial ou certidão;
- se proveniente de sentença, a consignação em tais documentos do trânsito
em julgado. Se a origem for decisão interlocutória, o trânsito em julgado
inexistirá, mas seria salutar se viesse mencionado no documento a ausência
de interposição de recurso ou outra fórmula capaz de transmitir a ausência
de combate à decisão que determinou o cancelamento da restrição, tornando-a
definitiva;
- o documento hábil, ainda que transitado em julgado, satisfazer os
requisitos registrais.
Referências Bibliográficas
ACQUAVIVA. Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. rev.
atua. amp. Edição de Luxo. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1995. Link,
acesso em 01.03.2009.
MELO jr. Regnoberto Marques de. Lei de registros públicos comentada. V. 1.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003.
NEGRÃO, Theotonio. GOUVÊA, José Roberto F. Código de Processo Civil e
legislação processual em vigor. 40 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, Gilberto Valente. O cancelamento do registro de penhora. p. 203-206.
Títulos Judiciais e o Registro de Imóveis. Coord. Diego Selhane Pérez. Rio
de Janeiro: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, 2005.
THEODORO Júnior. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 24 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1998.
* Mateus Colpo - Oficial Registrador do Registro de Imóveis e Títulos e
Documentos de Matupá - MT
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