O novo Código Civil, o registro civil de pessoas jurídicas e as normas de serviço da Corregedoria-Geral da Justiça

Graciano Pinheiro de Siqueira

Com o advento da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (NCC), e, principalmente, com a introdução, na referida legislação, de um novo livro, qual seja, o Livro II, que trata DO DIREITO DE EMPRESA, novas perspectivas são abertas para o Registro Civil de Pessoa Jurídica.

O NCC possui 2.046 artigos, dos quais 229 são dedicados ao aludido direito de empresa. Ele derrogou, expressamente, a primeira parte do Código Comercial de 1.850 e revogou o Decreto 3.708/1.919, que cuidava da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, atualmente denominada, simplesmente, sociedade limitada.

O novo Código é essencialmente registrário, e, nesse aspecto, prestigiou a atividade do registrador, eis que, do registro ou da averbação, dependerá a validade e a eficácia de determinados atos. Vide, nesse sentido, v.g., os artigos 45 (e seu parágrafo único), 967, 968, 985, 998, 1.032, 1.057, 1.063 (§ 3º), 1.075 (§ 2º), 1.083, 1.084 (§ 3º), 1.086, 1.150, 1.151 e 1.166.

Pois bem. O Código Civil, em seu artigo 966, adotou a teoria da empresa, não exatamente a teoria da empresa do Código Civil italiano de 1942. Por ela, busca-se tutelar o exercício de uma atividade econômica organizada, independentemente de sua qualidade civil ou comercial. A teoria da empresa, portanto, não se preocupa com o gênero da atividade econômica; o que importa para ela é o desenvolvimento da atividade econômica mediante a organização de capital, trabalho (alheio), tecnologia e matéria-prima (insumos) – organização dos chamados fatores de produção. Abandonou-se, em outras palavras, o regime da comercialidade (teoria dos atos de comércio), pelo da empresarialidade. Ou seja, não é mais o objeto social, isoladamente considerado, o fator preponderante para distinguir as naturezas das sociedades, agora designadas simples ou empresárias.

Como bem adverte o professor Nelson Abrão, fazendo, inclusive, citação a Ferri, “A importância que adquiriu o conceito de empresa, a partir do Código Civil italiano, veio enfraquecer o elemento objeto na caracterização dos tipos societários, fazendo-o ceder lugar à forma: “Em conseqüência da ligação à empresa, toda diferenciação entre sociedade civil e sociedade de comércio desaparece. O objeto da sociedade se, não obstante, não perde, como se viu, todo o relevo, não serve, todavia, para determinar uma diferença de estrutura” (Sociedade Simples; novo tipo societário?, Nelson Abrão, edição 1975, p.61). E é, justamente, na obra Le Società, de Giuseppe Ferri, edição de 1971, p.40, que encontramos a afirmação de que o objeto da sociedade (comercial ou civil) não serve para determinar uma diferença estrutural. Mas essa é que tem importância na escolha do tipo (empresário ou simples). É a estrutura, pois, que dará, ou não, a forma empresária à sociedade.

É importante frisar que, conforme afirmado pelo professor Miguel Reale, em matéria publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 15/2/2003, tanto a sociedade simples, como a sociedade empresária “têm ambas por fim a produção ou circulação de bens ou serviços, sendo constituídas por pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir para o exercício de atividade econômica e a partilha entre si dos resultados”, sendo que, quando a atividade econômica praticada pela sociedade for organizada, estruturada, estaremos diante de uma sociedade empresária, sujeita a registro no Registro Público das Empresas Mercantis, a cargo da Juntas Comerciais.

Estruturar a produção ou circulação de bens ou de serviços significa reunir os recursos financeiros (capital), humanos (mão de obra), materiais (insumos) e tecnológicos que viabilizem oferecê-los ao mercado consumidor com preços e qualidade competitivos.

A estrutura empresarial começa a se configurar a partir do momento em que os fatores de produção (um ou alguns) passam a representar um papel mais significativo do que a atuação pessoal ou familiar dos sócios.

O empresário, individual ou coletivo (sociedade) é, fundamentalmente, um coordenador dos fatores de produção. Razão porque o comerciante de ontem não é, necessariamente, o empresário de hoje. Ser empresário significa atingir um verdadeiro status, segundo o professor Waldírio Bulgarelli.

Entretanto, se atividade não tiver tal estruturação, estaremos diante de uma sociedade simples, sujeita a registro perante o Registro Civil das Pessoas Jurídicas.

A palavra chave, portanto, é organização.

Além disso, é característica marcante, na sociedade simples, o exercício da atividade diretamente, pessoalmente, pelos próprios sócios.

É oportuno ressaltar que a sociedade simples não está restrita meramente ao campo das atividades ligadas à profissão intelectual, literária ou artística, conforme mencionado no parágrafo único do artigo 966 do NCC. Ao contrário, estende-se a qualquer ramo de atividade, inclusive comercial, desde que não se enquadre no contexto empresarial.

Em suma, a sociedade simples é a sociedade não empresária.

O que houve, efetivamente, foi uma mudança de conceito. A sociedade civil do passado não é, necessariamente, a sociedade simples de hoje, assim como a sociedade comercial de ontem não é, necessariamente, a sociedade empresária da atualidade. Essa mudança de conceito, inclusive, pode ser claramente observada na doutrina dos professores Fábio Ulhoa Coelho e José Edwaldo Tavares Borba, em seus livros Manual de Direito Comercial, 14.ed., e Direito Societário, 9.ed., respectivamente, e também em pareceres por eles elaborados, bem como no recente parecer do professor Arnoldo Wald, por encomenda que lhes fizeram o IRTDPJ-Brasil , o CDT e os Registros Civis de Pessoas Jurídicas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, não podendo passar despercebida pelas egrégias corregedorias-gerais de Justiça das unidades da federação, especialmente a do estado de São Paulo, que deverá adequar-se à novel legislação, atualizando as Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais – Tomo II, especialmente seu Capítulo XVIII, itens 1. “a”, “b” e “f”; 2; e, 4.

Como observa o professor Borba, o “Código Civil ordenou um sistema de registro fundado em duas organizações preexistentes, o Registro Público de Empresas Mercantis e o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, atribuindo, como já antes mencionado, à primeira a inscrição dos empresários individuais e das sociedades empresárias, e à segunda a inscrição das sociedades simples (art. 1.150).

O não-empresário individual, que é o profissional autônomo, especialmente quando estabelecido, deveria contar também com um órgão de registro, tal como o empresário individual. E esse órgão seria, naturalmente, o Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Houve, com efeito, uma omissão do legislador, a ser suprida pelo intérprete, através dos processos de integração da norma jurídica (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil). Cabe aplicar, no caso, a analogia, com base no paralelismo que identifica a sociedade empresária com o empresário individual e a sociedade simples com o profissional autônomo estabelecido (“firma individual não empresária”). Assim, e por essa razão, e para que não permaneça à míngua de um registro, deverá o profissional autônomo estabelecido inscrever-se no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. No passado, através de ato publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (Poder Judiciário, Seção I, Estadual, pág. 18) de 16.07.99, já havia a Corregedoria Geral da Justiça admitido, constituindo assim um precedente, que as então “firmas individuais de natureza civil” fossem inscritas nesse registro”. Neste sentido, inclusive, o pronunciamento do festejado jurista Walter Ceneviva, em matéria publicada na Revista Autêntica, da Associação dos Serventuários de Justiça do Estado de Minas Gerais, Serjus, edição 1, de setembro de 2003, para quem “Se a sociedade simples é registrável no Registro Civil, é de se admitir que pessoa física, a qual, na qualidade de autônoma, assuma a condição de empresária, também nela tenha feito seu assentamento, ultrapassando o limite literal do texto codificado”. Aproveitada essa idéia, caberia também a modificação do disposto no item 21 das Normas de Serviço.

A propósito, dispõe o citado artigo 1.150 do novo codex, que “o empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das juntas comerciais, e a sociedade simples ao registro civil das pessoas jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária”.

O referido dispositivo traz em seu bojo uma novidade, que não pode ser desprezada, qual seja, deverá o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, quando a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária possíveis (sociedade limitada, sociedade em comandita simples e sociedade em nome coletivo), obedecer às normas fixadas para o Registro Público de Empresas Mercantis, diferentemente do que dispunha o artigo 1.364 do Código Civil de 1916, o qual determinava que “quando as sociedades civis revestirem as formas estabelecidas nas leis comerciais, entre as quais se inclui a das sociedades anônimas, obedecerão aos respectivos preceitos, no que não contrariem os deste Código; mas serão inscritas no registro civil, e será civil o seu foro”. Vale dizer: o Registro Civil das Pessoas Jurídicas deverá, com o advento da nova legislação civil pátria, seguir as normas estabelecidas na lei 8.934, de 18 de novembro de 1994 e no decreto 1.800, de 30 de janeiro de 1996, que a regulamentou, quando a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária. Ressalte-se, outrossim, que a opção pelo tipo empresarial não afasta a natureza simples da sociedade, conforme Enunciado 57 aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, de 11 a 13.9.02.

Nesse sentido, ver Modesto Carvalhosa in Comentários ao Código Civil, v. 13, p. 669, Saraiva, 2003, para quem “a norma inscrita no art. 1.150 tem eficácia imediata a partir do início da vigência do Código de 2002, não sendo necessária qualquer alteração da Lei n. 6.015/73 ou a edição de qualquer ato regulamentador do registro do comércio para lhe assegurar plena vigência”.

Assim sendo, se uma sociedade simples adotar, por exemplo, a forma de uma sociedade limitada, deverá o registrador ater-se aos referidos diplomas legais. Em o fazendo, poderá: a) exigir o visto de advogado apenas nos seus atos constitutivos; b) deixar de exigir a passagem dos contratos sociais e suas alterações, previamente, pelos órgãos de fiscalização de exercício profissional (Conselhos Regionais); e, c) dispensar o reconhecimento de firmas apostas nos instrumentos de contrato social e alterações contratuais, consoante o disposto nos artigos 36, 37 e 39 do aludido decreto, respectivamente. Destarte, as citadas Normas de Serviço deverão, ainda, ser atualizadas em seus itens 1.1 e respectiva nota; 11; e, 19.

É certo que quanto à exigência de visto de advogado a matéria foi tratada através do Proc. CG. 26.105/02. Todavia, a mesma merece ser reapreciada diante do fato novo, qual seja, a regra contida no aludido artigo 1.150 do NCC, que reforça o entendimento de que o visto de advogado só se faz necessário nos atos constitutivos das pessoas jurídicas de direito privado.

Reiterando o que aqui já foi dito, o registro civil das pessoas jurídicas deverá, em face daquele dispositivo, seguir as regras contidas na lei 8.934/94 e no decreto 1.800/96, sendo ambos os diplomas posteriores, inclusive, à lei 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia).

Assim sendo, se faz necessário dar o mesmo peso e medida ao registro e arquivamento dos atos societários empresariais e não empresariais, no tocante ao visto de advogado, havendo necessidade de uma uniformização de entendimentos e procedimentos entre as duas vertentes competentes para o registro das sociedades simples (Registro Civil das Pessoas Jurídicas) e empresárias (Junta Comercial).

Tais argumentos são importantes num momento de transição como o que estamos vivenciando, especialmente considerando-se a possibilidade de os Oficiais do Registro Civil das Pessoas Jurídicas passarem a receber sociedades com objetivos mercantis, tornando mais igual a concorrência com a Junta Comercial.

*Graciano Pinheiro de Siqueira é especializado em Direito comercial pela Faculdade de Direito da USP e Substituto do Quarto Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica em São Paulo, SP, e-mail: gpsiqueira@bol.com.br (Texto elaborado em novembro de 2004).


Fonte: Boletim Eletrônico do IRIB/ANOREG-SP n. 1.494 - 17/01/2005