Artigo - Escritura de União Poliafetiva: impossibilidade - Por Rolf Hansen Madaleno

A partir da Carta Política de 1988 foi sendo desconstituída a ideologia da família patriarcal, edificada na relação monogâmica, parental, patriarcal, heterossexual e patrimonial, asfixiando o livre trânsito do afeto como base de toda e qualquer estrutura familiar, ao lado de outros valores inerentes aos relacionamentos que aproximam e aninham as pessoas. A família do passado não tinha preocupação alguma com o afeto e sua felicidade restava embotada pelos seus interesses econômicos construídos em um modelo familiar de um pai e uma mãe e seus filhos, todos financeiramente dependentes.

Nem mesmo os modelos de entidades familiares lembrados pela Constituição Federal de 1988 abarcam a diversidade familiar presente na sociedade brasileira, cujos vínculos tem seu suporte no afeto. Tem sido o afeto a nota frequente que identifica a constituição e o reconhecimento oficial de uma entidade familiar, e faz pouco tempo que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n° 132/RJ e a ADI n° 4.277/DF conferiu ao artigo 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição Federal, para excluir do dispositivo legal todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

E nesta toada se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça no REsp. n° 1.183.378/RS, ao destacar serem múltiplos os arranjos familiares, não havendo como negar a proteção estatal a qualquer família, independentemente de orientação sexual dos seus participes, pois todas possuem os mesmos núcleos axiológicos da dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.

Este, portanto, o perfil da família plural, que se estrutura e convive a partir da afetividade, razão da existência da tradicional família matrimonial, da constituição da união estável, assim como se mostra intensamente presente na família monoparental, e na família homoafetiva, na família anaparental, na família reconstruída, na família paralela, na família eudemonista, e igualmente identificado na família poliafetiva, da qual os noticiários nos eram notícia a partir de uma escritura pública lavrada em cartório localizado na cidade de Tupã, no interior de São Paulo. Trata-se de um triângulo amoroso, constituído pela relação afetiva de um homem e duas mulheres, vivendo todos sob o mesmo teto, em convivência consentida e que no passado era veementemente reprimida e socialmente maculada como uma abjeta, ilegítima e antissocial poligamia.

Em tempos de exaltação do afeto como condição de formação do núcleo familiar, a relação amorosa triangular é denominada de união poliafetiva, e tantas outras pode se supor que existam neste imenso território brasileiro, mas que ainda não decidiram sair do armário, para tomar emprestada uma expressão que teve enorme influência no movimento social que resultou na aclamação jurídica da união homoafetiva. Deste armário saiu pioneiramente este trio do Rio de Janeiro, que decidiu oficializar sua relação afetiva e enfrentar o dogma da monogamia, consignando a existência de uma união afetiva entre um homem e duas mulheres que afirmam viverem em harmônica coabitação em uma única moradia, não se confundindo nesse aspecto com uma família paralela, na qual um homem, em regra, vive ao mesmo tempo com duas mulheres, mas em residências distintas.

O triângulo poliafetivo inspirou certamente seu contrato nos valores supremos da dignidade humana e no afeto, princípios constitucionais presentes na construção dos vínculos familiares, e quando a Carta Federal tutela a pluralidade familiar, justifica sua função a partir da promoção da pessoa humana, literalmente desencarnada do seu precedente biológico e do seu viés econômico, para fincar os elos psicológicos do afeto e sua comunhão contígua e solidária, os quais se sobrepõem aos valores materiais e hereditários valorizados no passado. Esta família do presente parte de uma relação de estabilidade, coabitação em regra e livre desejo de criar um núcleo familiar de proteção recíproca, solidariedade e interdependência econômica, tudo inserido em um projeto de vida em comum que destoa do tipo familiar de uma única configuração, pois isto nem mesmo a Constituição Federal continua defendendo. Sujeito de direitos, cada participe dessa diversidade familiar tem a liberdade de formar ou não sua própria família, sem ser obrigado a aderir a um modelo único de um elenco fechado de entidade familiar, diante de um perfil de família plural.

Esta é a família poliafetiva, integrada por mais de duas pessoas que convivem em interação afetiva dispensada da exigência cultural de uma relação de exclusividade apenas entre um homem e uma mulher vivendo um para o outro, mas sim, de mais pessoas vivendo todos sem as correntes de uma vida conjugal convencional. É o poliamor na busca do justo equilíbrio, que não identifica infiéis quando homens e mulheres convivem abertamente relações afetivas envolvendo mais de duas pessoas.

Vivem todos em notória ponderação de princípios, cujo somatório se distancia da monogamia e busca a tutela de seu grupo familiar escorado no elo do afeto. A começar com o princípio do pluralismo das entidades familiares, consagrado pela Carta Política de 1988, que viu no matrimônio apenas uma das formas de constituição da família, admitindo, portanto, outros modelos que não se esgotam nas opções exemplificativamente elencadas pela Constituição Federal, não havendo mais dúvida alguma acerca da diversidade familiar depois do reconhecimento pelo STF das uniões homoafetivas, que terminou com qualquer processo social de exclusão de famílias diferentes.

Prepondera o princípio constitucional da afetividade, sobrepondo o afeto sobre o aspecto patrimonial e econômico que antigamente identificava a família exclusiva do casamento. Passando a mulher a assumir uma carreira profissional e contribuindo para a subsistência familiar, extrapolando os limites domésticos de sua atuação, os elos afetivos cuidaram de estruturar a nova família que encontra sua dignidade e realização pessoal de cada integrante do núcleo familiar.

Contudo, oficializar o triângulo amoroso pela escritura pública de um vinculo poliafetivo não é suficiente para declarar marido e mulheres ou esposa e maridos de uma relação de poliamor. O princípio da monogamia continua sendo um princípio ordenador de uma conduta humana ao menos preferencial de organização das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Somente o Poder Judiciário está habilitado para reconhecer circunstanciais efeitos jurídicos aos contratos de relações poliafetivas, no tocante à partilha de bens em caso de dissolução parcial ou total do triângulo afetivo, seja pela dissolução em vida ou pela morte de algum dos três ou de mais conviventes, assim como o direito aos alimentos ou à previdência social, o uso do apelido de família e todas as demais efeitos jurídicos que irão depender de pronunciamento judicial, prestando-se a escritura como simples declaração e prova de uma convivência triangular. Isso porque não há nenhum dispositivo de lei reconhecendo a validade de uma relação poliafetiva, e muito menos a exigir a escritura pública como condição de manifestação de vontade, de publicidade, segurança e solenidade imposta para a constituição e validade de uma relação de poliamor. De conformidade com o artigo 215 do Código Civil, a escritura pública, lavrada em notas de tabelião é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena, mas somente de uma clara manifestação de vontade das partes e dos intervenientes (§ 1°, inciso IV, do art. 215 do CC) de anunciarem publicamente seu relacionamento poliafetivo, e nisto se exaurem os efeitos da mencionada escritura de declaração.

Autor: ROLF HANSSEN MADALENO: Advogado. Mestre em Direito. Professor da PUC/RS. Autor de diversas obras.


Fonte: Site ARPEN-SP - 09/11/2012.

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