Artigo - Análise preliminar da EC nº 66/10 e seus reflexos no divórcio por escritura pública - Paulo Hermano Soares Ribeiro

UMA ANÁLISE PRELIMINAR DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010 E SEUS REFLEXOS NO DIVÓRCIO POR ESCRITURA PÚBLICA

 Paulo Hermano Soares Ribeiro[1]

1. Introdução. 2. Breve Evolução do Divórcio no Direito Brasileiro. 3. A Emenda Constitucional n. 66 e a Legislação Infraconstitucional. 3.1. Das Emendas à Constituição. 3.2. Revogação da Legislação Infraconstitucional Incompatível. 4. Do Divórcio na Perspectiva da EC 66/2010. 4.1 Da Supressão dos Prazos. 4.1. Da Separação. 5. DA Função Social de Notários e Registradores. 6. Conclusões sobre Aspectos Práticos da Escritura Pública de Divórcio. 7. Referências.  

1 INTRODUÇÃO:

               A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66 (EC 66), de 13 de julho de 2010, promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, alterou a realidade normativa brasileira sobre a dissolução do casamento, nos seguintes termos:

 

Art. 1º. O § 6º do art. 226 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 226. .................................................................................

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio."

Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. (Grifos não originais)

 

               A alteração eliminou do texto primitivo do § 6º do art. 226 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) o complemento que estabelecia prévia separação e prazos como requisitos para o divórcio, assim redigidos originalmente:

 

§ 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.[2]

 

               A simplicidade da EC 66, que apenas reduziu o texto constitucional, é apenas aparente. Ao extirpar do texto as expressões que limitavam seu alcance, o legislador libertou o instituto do divórcio de suas amarras históricas e provocou uma mudança de paradigma, cuja assimilação em sua inteireza pode chegar a ser agressiva para espíritos conformados com os princípios então vigentes.

               O presente artigo, embora despretensioso, busca contribuir para a compreensão do novo paradigma de forma técnica, desacompanhado o raciocínio das perplexidades que podem imiscuir na serenidade que a interpretação da novidade reclama.

               Embora existam graves questões ligadas ao divórcio judicial, o exame na perspectiva do processo litigioso delira dos objetivos deste trabalho, pelo que delas não trataremos.

               O foco central é instigar o debate e oferecer conclusões preliminares para a formação de um conjunto de procedimentos a serem adotados pelos notários e registradores no divórcio por escritura pública.

 

2 BREVE EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO DIVÓRCIO NO DIREITO BRASILEIRO:

               Historicamente, no Brasil, o legislador constitucional, certamente muito influenciado pela tradição judaico-cristã, erigiu o casamento em um altar de sacralidade, proibindo por um longo período sua dissolução.

               A indissolubilidade possuía índole constitucional, verdade facilmente verificável no cotejo das Constituições Brasileiras de 1934[3], 1937[4], 1946[5] e 1967[6].

               O ingresso do divórcio na legislação brasileira somente foi possível por meio da Emenda Constitucional nº 9 (EC nº 9), de 28 de junho de 1977, produto do trabalho incansável e obstinado de Nelson Carneiro, que enfrentou a dura oposição da igreja e da classe mais conservadora contrárias a seu projeto.

               Promulgada, a EC nº 9 alterou o parágrafo 1º do art. 175 do texto constitucional então vigente, admitindo que o casamento pudesse “ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos".

               Na esteira da EC nº 9, veio a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, alcunhada de Lei do Divórcio, que regulou os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, com base no permissivo constitucional. 

               A CF/88, em seu artigo 226, § 6º, avançou no tratamento legal, estabelecendo que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”. Para trazer coerência, a legislação ordinária foi alterada para se adequar aos novos ditames constitucionais.[7]

               A Lei 11.441 de 04 de janeiro de 2007, embora não seja norma de direito substantivo, alterou dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, possibilitando o divórcio consensual por via administrativa.

               Finalmente, a EC nº 66 afastou do texto constitucional a referência aos prazos para o divórcio, e não mais se referiu a separação como requisito para o divórcio, reduzindo a dicção do referido § 6º do art. 226 para a singela expressão “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.

               Oportuno observar que a primeira proposta de emenda constitucional (PEC) continha o seguinte texto: “§ 6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio consensual ou litigioso, na forma da lei”.

               No curso da tramitação, a expressão “na forma da lei” foi eliminada, o que nos pareceu salutar pois fechou as portas para a dependência de legislação ordinária para regulamentação do dispositivo, providência não isenta de riscos, diga-se de passagem, porque remete para o futuro a efetividade da norma, além de eventualmente inviabilizá-la com limites não esperados.[8] A respeito, Paulo Lobo assevera que:

Por certo, o texto resultante ficou mais adequado ao espírito da proposta, particularmente no que concerne à remissão à lei infraconstitucional. A norma passará a ter eficácia imediata e direta – e não contida - , sem os riscos de limitações que poderiam advir de lei ordinária, inclusive com a reintrodução dos requisitos subjetivos (culpa) ou até mesmo de prévia separação judicial, o que configuraria verdadeira fraude à Constituição.[9] 

3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66 E A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL:

 

3.1 Das Emendas à Constituição:

               Emendas Constitucionais são instrumentos criadores de norma constitucional, à disposição do poder constituinte derivado, expressamente previstas e limitadas pelo poder constituinte originário para materializar o poder reformador da Constituição.

               No nosso sistema, o constituinte originário atribuiu ao Congresso Nacional as funções de poder constituinte derivado, que votará e promulgará as Emendas Constitucionais, conforme se verifica do disposto no art. 60, parágrafos 2º e 3º da CF/88.[10]

               Uma vez promulgada, a emenda é anexada à Constituição, e passa a fazer parte dela, com o mesmo prestígio das normas originárias, usufruindo de toda sua supremacia e força normativa.

 

3.2             Revogação da Legislação Infraconstitucional Incompatível:

               As normas infraconstitucionais têm sua constitucionalidade examinada à luz da Constituição vigente no momento em que são promulgadas.[11] Mas o que dizer de uma norma que foi promulgada ao abrigo da Constituição em vigor, mas, em momento posterior (e durante a sua vigência), perde compatibilidade em razão de mudança na própria Constituição?

               O Supremo Tribunal Federal (STF) já enfrentou o tema na busca da definição de tais normas: se seria caso de inconstitucionalidade superveniente, ou se as normas simplesmente estariam revogadas. A questão foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 02-DF (DJ 21.11.1997), com relatoria do Ministro Paulo Brossard, e assim decidiu a questão, após intenso debate:

[...] A lei é constitucional quando é fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que lei ordinária. 2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. (Grifos não originais)  

               Destaca-se ainda, do voto condutor do acórdão, da lavra do Ministro Paulo Brossard, o seguinte:

O reconhecimento da supremacia da Constituição traduz efeito conseqüencial imediato decorrente de sua promulgação e vigência. Nela repousa o fundamento da validade e de sua eficácia do ordenamento positivo do Estado. Os atos de menor hierarquia normativa extrairão, do estatuto fundamental, o pressuposto de sua existência, validade e eficácia. Se forem posteriores a Constituição – e com ela não mantiveram relação de conformidade -, reputar-se-ão inconstitucionais. Se lhe forem anteriores – e com a nova ordem constitucional não guardarem relação de compatibilidade material -, considerar-se-ão revogados, pelo fato de não haverem sido recebidas pelo novo estatuto fundamental.
               Essa posição vencedora no STF define com relativa clareza a automática revogação da legislação infraconstitucional incompatível, e no caso sub exame a revogação da legislação que traz exigências não mais oriundas da norma constitucional.[12]
               E, estabelecido que as normas incompatíveis com a Constituição, promulgadas em data anterior, encontram-se revogadas, não é razoável aduzir que a revogação dependeria de outra norma infraconstitucional revogadora expressa. Basta a incompatibilidade para tal. Pensar de outro modo, seria negar os princípios da supremacia e da força normativa da Constituição.[13]

               Nunca é demais lembrar que a Constituição Federal ocupa o ápice do ordenamento jurídico, com máxima superioridade hierárquica em relação as demais normas.[14] Segundo lição de Perez Luño, citado por Mário Albuquerque, essa prioridade hierárquica e qualitativa da norma constitucional:

se traduz não somente na existência de características peculiares que conotam sua interpretação (interpretação da Constituição), mas a converte, também, no critério hermenêutico-guia para interpretar todas as restantes normas do ordenamento jurídico (interpretação desde a Constituição). A natureza da lei superior se reflete, pois, na necessidade de se interpretar todo o ordenamento de conformidade com a Constituição (...)[15]

4 DO DIVÓRCIO NA PERSPECTIVA DA EC 66/2010:

               O Divórcio compreende a completa e definitiva cessação do vínculo conjugal inaugurado pelo casamento, de modo a apagar o liame familiar existente entre os cônjuges. Diferencia-se da Separação, na dogmática nacional, porque essa tem o condão de fazer cessar apenas a sociedade conjugal.[16]

               O “divórcio” referido na EC n. 66 se ajusta dentro do conceito de cessação do vínculo conjugal, não podendo seu alcance ou definição receber tratamento elástico do legislador infraconstitucional.

 

4.1 Da Supressão dos Prazos:

               A redação original do § 6º do art. 226 da CF/88 exigia, para a dissolução do casamento pelo divórcio, os seguintes requisitos: a) prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei; ou, b) comprovada separação de fato por mais de dois anos.

               A legislação ordinária, obedecendo aos limites impostos pela Constituição, estabelecia:

               a) Código Civil, art. 1.580:

Art. 1.580. Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio.

§ 1o A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou.

§ 2o O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos.

               b) Lei 6.515/77:

Art. 25. A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges existente há mais de um ano, contada da data da decisão ou da que concedeu a medida cautelar correspondente (art. 8°), será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou.

Art. 40. No caso de separação de fato, e desde que completados 2 (dois) anos consecutivos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual deverá ser comprovado decurso do tempo da separação.

               A razão da legislação ordinária, no que se refere aos requisitos temporais para o divórcio, repousava na Constituição que os exigia.

                Afastadas tais exigências, porque extirpadas do texto do parágrafo 6º do art. 226 da CF/88, restam incoerentes as normas inferiores que as mantém, e essa desconformidade conduz à sua inevitável revogação.

 

4.2 Da Separação:

4.2.1        A separação prévia e formalizada, judicial ou administrativa, fez parte de um sistema existente no Brasil que exigia uma dupla via para o fim do casamento.

               O papel da separação era o de rescindir a sociedade conjugal, sem prejudicar o vínculo, de modo que entre os cônjuges cessassem os deveres de coabitação e fidelidade recíproca, e não mais vigorasse o regime de bens.[17]

               A separação sem ruptura do vínculo conjugal surgiu e se sustentou em nosso ordenamento por força de determinação Constitucional, ingressando em nosso sistema com o nome de “desquite”, conforme se infere do art. 144, parágrafo único, da Constituição de 1934. Na Constituição de 1967, por meio da EC nº 9/1977, que alterou o parágrafo 1º do art. 175, a terminologia foi atualizada para “separação judicial” e passou a ser requisito para o divórcio.

               Em sua origem, portanto, a separação se mostra como instituto/meio para a ruptura do vínculo conjugal pelo divórcio.

               A propósito, há uma nítida involução da importância da separação da década de 70 até os dias atuais. Em 1977, a separação judicial era requisito necessário para a obtenção do divórcio, somente alcançável após três (03) anos do fim da sociedade conjugal. Em 1988, a separação judicial deixou de ser a única via para o divórcio, em face da possibilidade de divórcio direto, e, mesmo a conversão da separação em divórcio exigia apenas um (01) ano de sua realização.

               Agora, a novidade introduzida pela EC 66/2010, prevê a possibilidade de divórcio independentemente de prévia separação, circunstância que esvazia definitivamente seu sentido e utilidade jurídica.

               Não há mais direito subjetivo a separação, esta entendida como via de acesso ao divórcio. Em uma perspectiva pragmática, é possível concluir que um dos cônjuges não pode retardar o divórcio, “preferindo” ingressar primeiro com a separação tão somente para retardar o fim do vínculo.

               Aliás, uma das razões invocadas pelo Deputado SÉRGIO BARRADAS CARNEIRO na justificativa da PEC do divórcio é justamente um dos desideratos da EC 66/2010, in verbis:

Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta.

Impõe-se a unificação no divórcio de todas as hipóteses de separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais. A submissão a dois processos judiciais (separação judicial e divórcio por conversão) resulta em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis.

Por outro lado, essa providência salutar, de acordo com valores da sociedade brasileira atual, evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam reveladas e trazidas ao espaço público dos tribunais, como todo o caudal de constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação.

Levantamentos feitos das separações judiciais demonstram que a grande maioria dos processos são iniciados ou concluídos amigavelmente, sendo insignificantes os que resultaram em julgamentos de causas culposas imputáveis ao cônjuge vencido. Por outro lado, a preferência dos casais é nitidamente para o divórcio que apenas prevê a causa objetiva da separação de fato, sem imiscuir-se nos dramas íntimos; afinal, qual o interesse público relevante em se investigar a causa do desaparecimento do afeto ou do desamor?

O que importa é que a lei regule os efeitos jurídicos da separação, quando o casal não se entender amigavelmente, máxime em relação à guarda dos filhos, aos alimentos e ao patrimônio familiar. Para tal, não é necessário que haja dois processos judiciais, bastando o divórcio amigável ou judicial. (grifos não originais)

               A separação como ante-sala do divórcio, examinando a mens legislatoris (intenção do legislador), não mais subsiste e, pelas razões já expostas, no confronto com a mens legis ou a ratio legis (intenção da lei ou a razão da lei), o resultado será o mesmo.[18]

               Além das interpretações histórica e autêntica, a insubsistência do instituto da separação também não resiste ao exame sob uma interpretação teleológica. Neste método de interpretação busca-se a finalidade da norma, no sentido de atender às “relações da vida, da qual brotam as exigências econômicas e sociais, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa, à luz dos princípios da justiça e da utilidade comum”[19]. O jurista Paulo Lobo identifica os fins sociais da nova norma constitucional e leciona que são aqueles que visam:

permitir sem empeço e sem intervenção estatal na intimidade dos cônjuges, que estes possam exercer com liberdade seu direito de desconstituir a sociedade conjugal, a qualquer tempo e sem declinar os motivos. Consequentemente, quais os fins sociais da suposta sobrevivência da separação judicial, considerando que não mais poderia ser convertida em divórcio? Ou ainda, que interesse juridicamente relevante subsistiria em buscar-se um caminho que não pode levar à dissolução do casamento, pois o divórcio é o único modo que passará a ser previsto na Constituição? O resultado da sobrevivência da separação judicial é de palmar inocuidade, além de aberto confronto com os valores que a Constituição passou a exprimir, expurgando os resíduos de quantum despótico: liberdade e autonomia sem interferência estatal.[20]

               Se, por fim, levarmos em consideração a subsistência da separação em uma perspectiva panorâmica do ordenamento jurídico, haveremos de encontrar enormes dificuldades em sua compreensão.

               Somente para exemplificar, consideremos duas perspectivas: a) a separação sempre teve menor densidade que o divórcio, posto que aquela dissolvia apenas a sociedade conjugal, enquanto este extingue o próprio vínculo, cortando qualquer liame entre os cônjuges; b) com a EC 66 o divórcio não exige prazo para sua realização, mas a separação – consensual - continua a exigir um tempo mínimo de um (01) ano de casados.

               Se mantivermos a separação teremos um instituto de menor conteúdo e utilidade (separação), mais exigente e com maior complexidade que outro de maior conteúdo e proveito (divórcio).

               A interpretação, portanto, levaria a um paradoxo, ou eventualmente, ao absurdo.

               O exame da norma, buscando a complementaridade de diversos métodos interpretativos, conduz inevitavelmente a uma interpretação integralizadora que se resume na insubsistência da separação em nosso ordenamento.

 

4.2.2        Uma hipótese tem perturbado os notários e registradores: e se, a despeito da não recepção pela Constituição, ambos os cônjuges decidirem em comum acordo pela via mais longa para obterem o desvínculo? Seria possível lavrar escritura pública de separação consensual, após a EC 66/2010, sem os efeitos de rompimento do vínculo?

               A questão soa estranha, quase que como um falso problema, já que não é razoável imaginar alguém que queira e, ao mesmo tempo, não queira extinguir seu casamento, verdadeiro paradoxo da vontade.

               A resposta, com base no exposto, é no sentido negativo, porque, repita-se, a separação, como via de acesso ao divórcio, perdeu sua tutela constitucional.

               Contudo, se as partes, em comum acordo, manifestarem interesse em apenas formalizar a separação de corpos mediante declaração perante o Tabelião, com o objetivo de fixar no tempo o momento em que fazem cessar os efeitos do pacto antenupcial e deveres do casamento, essa declaração nos parece possível, e terá a estrutura da escritura pública de separação consensual.

               De qualquer sorte, se essa for a opção dos interessados, o fato de lavrar a escritura não obriga as partes a qualquer prazo para o divórcio, que poderá se realizar a qualquer momento.

 

5 DA FUNÇÃO SOCIAL DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES:

               Um tema tão grave como o fim do casamento, realizado sob a presidência do Tabelião de Notas, atrai a reflexão sobre a função social que notários e registradores devem desempenhar no exercício de suas atividades.

               As novas funções que tem sido atribuídas aos Notários e Registradores, como substitutos da jurisdição, trazem junto, além da qualificação como agentes da segurança jurídica, da prevenção de litígio e da paz social, o robustecimento dos ônus do esclarecimento e aconselhamento jurídicos das partes.

               É imperioso que os cônjuges, ao procurar o Tabelião, encontrem um profissional sensível e preparado para orientar e aclarar dúvidas sobre as graves e definitivas conseqüências do divórcio, contribuindo para que equívocos não sejam cometidos pelas partes em momentos de ira ou indecisão.

               O respeito que o cidadão tem pelo Notário e Registrador, evidenciado pelas pesquisas recentes, deve ser utilizado a favor do próprio cidadão, convertido em esforço no sentido de identificar e realizar os reais e legítimos interesses postos para sua apreciação.

 

6 CONCLUSÕES SOBRE ASPECTOS PRÁTICOS DA ESCRITURA PÚBLICA DE DIVÓRCIO:

 

6.1 Vigência e Efetividade da EC 66:

                   A EC 66/2010 possui eficácia imediata e direta, podendo ser aplicada pelo Notário na lavratura de escrituras pública de divórcio direto.

 

6.2 Aplicabilidade da Lei 11.441/07:

               A EC 66/2010 em nada alterou questões de natureza procedimental, seja na esfera judicial ou extrajudicial. A Lei 11.441/07, que faculta o divórcio consensual entre pessoas capazes, perante o Tabelião de Notas, desde que não haja filhos menores ou incapazes, permanece amplamente aplicável com a nova sistemática.

               As mesmas regras e limitações, então observadas para os atos definidos pela Lei 11.441/2007, continuam sendo respeitadas, consideradas e cumpridas.

 

6.3 Prazo entre o casamento e o divórcio:

               Nos termos do art. 1.574 do CC/02, a separação por mútuo consentimento somente era possível para os cônjuges que fossem casados há mais de um (01) ano.

               O prazo não se aplica no que diz respeito ao divórcio, pela inexistência deste requisito no texto constitucional.

 

6.4 Exigência de testemunhas:

               As testemunhas exigidas pelo Tabelião de Notas na escritura pública de divórcio tinham o desiderato de fazer prova do lapso temporal cumprido, nos casos de divórcio direto.

               Com a inexigibilidade dos prazos, o papel das testemunhas desaparece.

 

6.5 Divórcio-conversão ou divórcio direto:

               As pessoas que já realizaram a separação, judicial ou por escritura pública, deverão lavrar escritura de conversão da separação em divórcio ou divórcio direto?

               Nosso entendimento é de que se deve lavrar a escritura pública de divórcio, já que esta é a única figura prevista constitucionalmente diante do desaparecimento da tutela constitucional da separação.

 

6.6 Divórcio e Partilha de Bens:

               As normas infraconstitucionais inerentes ao divórcio, desde que não colidentes com a EC 66, continuam vigentes, inclusive o art. 1.581 do CC/02: “o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens”.

 

6.7 Divórcio e Restabelecimento:

               Nos termos do art. 1.577 do CC/02, “seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo”.

               Assim, se o casal encontrar-se apenas separados judicialmente ou por escritura pública, ainda é possível o restabelecimento da sociedade conjugal, a despeito da força revogatória da EC 66/2010.

               A reconciliação ocorre porque o vínculo conjugal continua íntegro nessa situação transitória.

               O mesmo não sucede em caso de divórcio. Doravante, somente um novo casamento poderá reatar o vínculo conjugal rompido.

 

7 REFERÊNCIAS:

ALBUQUERQUE, Mário Pimentel de. O órgão jurisdicional e a sua função: estudos sobre a ideologia, aspectos críticos, e o controle do Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1997.

BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. 

BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O Controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Atualizado por José Aguiar Dias. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. (Série Arquivos do Ministério da Justiça). 

CAHALI, Yussef Said. Divórcio e Separação. 11. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 

CANOTILHO, José J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. 

GAGLIANO, Pablo Stolze. A nova emenda do divórcio. Primeiras reflexões. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2568, 13 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/16969>. Acesso em: 18 jul. 2010. 

HESSE, Konrad, Die normative Kraft der Verfassung, s.a., trad. port. de Gilmar Ferreira Mendes, A força normativa da Constituição, Porto Alegre, Fabris, 1991.  

LÔBO, Paulo Luiz Neto. “PEC do divórcio: conseqüências jurídicas imediatas. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, v. 11 (agosto/setembro, 2009). 

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Tomo II, 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora; DINIZ, Maria Helena. Normas constitucionais e seus efeitos, 2ª ed., Saraiva, São Paulo, 1997. 

MORAES, Maria Celina Bodin,"A caminho de um Direito Civil Constitucional". Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. 1.°, 1991, publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC/RJ. 

PERLINGIERI, Pietro. Il Diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: ESI, 1991, n. 136. 

SILVA, José Afonso da Silva.  Aplicabilidade das normas constitucionais, 6. ed. (3. tir.), São Paulo: Malheiros, 2004.


[1] Professor de Direito Civil, Tabelião de Notas em Montes Claros, MG, coordenador do Departamento de Notas da SERJUS-ANOREG-MG, autor de obras jurídicas e multidisciplinares.

[2] Os grifos, não originais, demonstram a parte do parágrafo 6º extirpada pelo EC 66/2010.

[3] CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 16 DE JULHO DE 1934): art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.

Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo.

[4] CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 10 DE NOVEMBRO DE 1937): art. 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos.

[5] CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 18 DE SETEMBRO DE 1946): art 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.

§ 1º - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público.

§ 2º - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente.

[6] CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1967: art. 167 - A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.

§ 1º - O casamento é indissolúvel.

[7] Vide Lei nº 8.408, de 13 de fevereiro de 1992.

[8] Na visão de Pablo Stolze, “Esta supressão, aparentemente desimportante, revestiu-se de grande significado jurídico. Caso fosse aprovada em sua redação original, correríamos o sério risco de minimizar a mudança pretendida, ou, o que é pior, torná-la sem efeito, pelo demasiado espaço de liberdade legislativa que a jurisprudência poderia reconhecer estar contida na suprimida expressão.Vale dizer, aprovar uma emenda simplificadora do divórcio com o adendo “na forma da lei” poderia resultar em um indevido espaço de liberdade normativa infraconstitucional, permitindo interpretações equivocadas e retrógradas, justamente o que a proposta quer impedir” (GAGLIANO, Pablo Stolze. A nova emenda do divórcio. Primeiras reflexões. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2568, 13 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/16969>. Acesso em: 18 jul. 2010).

[9] LÔBO, Paulo Luiz Neto. “PEC do divórcio: conseqüências jurídicas imediatas. Revista brasileira de direito das famílias e sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, v. 11 (agosto/setembro, 2009.

[10] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:  I -  de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II -  do Presidente da República; III -  de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

(...)

§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

(...)

[11] Para Lúcio Bittencourt, "a inconstitucionalidade é um estado – estado de conflito entre uma lei e a Constituição"in BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O Controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Atualizado por José Aguiar Dias. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 132. (Série Arquivos do Ministério da Justiça). Sobre o assunto, vide ainda, CANOTILHO, José J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 878..

[12] A doutrina tem sustentado a posição do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, vide:  MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 239; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Tomo II, 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora; DINIZ, Maria Helena. Normas constitucionais e seus efeitos, 2ª ed., Saraiva, São Paulo, 1997.

[13] Se uma lei nova incompatível com uma lei anterior a revoga tacitamente, com muito mais razão a norma constitucional, que lhe é superior, também o fará.

[14] A respeito, vide: HESSE, Konrad, Die normative Kraft der Verfassung, s.a., trad. port. de Gilmar Ferreira Mendes, A força normativa da Constituição, Porto Alegre, Fabris, 1991; PERLINGIERI, Pietro. Il Diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: ESI, 1991, n. 136; SILVA, José Afonso da Silva.  Aplicabilidade das normas constitucionais, 6. ed. (3. tir.), São Paulo: Malheiros, 2004; BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1990; MORAES, Maria Celina Bodin,"A caminho de um Direito Civil Constitucional". Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. 1.°, 1991, publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC/RJ.

[15]Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución; apud ALBUQUERQUE, Mário Pimentel de. O órgão jurisdicional e a sua função: estudos sobre a ideologia, aspectos críticos, e o controle do Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1997, pág. 154.

[16] Em síntese, entende-se por vínculo conjugal o liame institucional que reúne marido e mulher sob o status de casados , protagonizando a comunhão plena de vida. Para que os cônjuges deixem de sê-lo e possam casar-se em segundas núpcias, é imperativo que este vínculo seja rompido.            A sociedade conjugal, por sua vez,  compreende o complexo de direitos e obrigações, principalmente patrimoniais (mas não somente estes) que integram o vínculo conjugal. Nos termos do art. 1.576 do Código Civil, “a separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”.

[17] CAHALI, Yussef Said. Divórcio e Separação. 11. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, leciona que “o divórcio, como ruptura de um matrimônio válido, põe termo ao casamento e aos efeitos civis do casamento e aos efeitos civis do matrimônio religioso (artigo 24 da Lei n° 6515/77), ainda que não repetida essa disposição no CC), ensejando aos divorciados a convolação de novas núpcias.

Enquanto isso, a separação judicial apenas põe fim às relações patrimoniais entre os cônjuges, que são dispensados dos deveres de coabitação e fidelidade recíproca (artigo 1.576 do CC).

Difere assim do divórcio, pois apenas relaxa os liames do matrimônio, mas sem provocar o rompimento do vínculo conjugal."

[18] A insubsistência é sustentada por Pablo Stlze, in GAGLIANO, Pablo Stolze. A nova emenda do divórcio. Primeiras reflexões. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2568, 13 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/16969>. Acesso em: 18 jul. 2010); e, por Maria Berenice Dias, in DIAS, Maria Berenice. Até que enfim..., texto disponível no: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=513, acessado em 19 de julho de 2010.

[19] ALBUQUERQUE, Mário Pimentel de. O órgão jurisdicional e a sua função: estudos sobre a ideologia, aspectos críticos, e o controle do Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1997, pág. 161.

[20] Lobo, Paulo Luiz Neto, op cit., p. 8.


Fonte: SERJUS-ANOREG/MG - 20/07/2010.

Nota de responsabilidade

As informações aqui veiculadas têm intuito meramente informativo e reportam-se às fontes indicadas. A SERJUS não assume qualquer responsabilidade pelo teor do que aqui é veiculado. Qualquer dúvida, o consulente deverá consultar as fontes indicadas.