Ação civil pública - Dano ambiental - Edificações em área de reserva ecológica - Demolição

 

AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR DANO AMBIENTAL - EDIFICAÇÕES EM ÁREA DE RESERVA ECOLÓGICA SITUADA A MENOS DE CEM METROS DE LAGO ARTIFICIAL DE REPRESAMENTO DE ÁGUA PARA USINA HIDRELÉTRICA - DEMOLIÇÃO DAS EDIFICAÇÕES SOERGUIDAS NESTA ÁREA - POSSIBILIDADE E NECESSIDADE - DANO MORAL COLETIVO - INEXISTÊNCIA

- Hodiernamente, tem-se, pois, a função ambiental da propriedade, além da função social, podendo se estabelecer, então, a função socioambiental da propriedade, que encontra respaldo anterior na Constituição da República, ao garantir o direito à propriedade, dispondo que tal deve atender e observar a conjugação indissociável dos princípios da propriedade privada, da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente (art. 5º, XXII, XXIII; art. 170, II, III, VI; e art. 225, caput e SS 3º, da Constituição da República). É no âmbito deste regramento jurídico que deve se dar o exercício do direito de propriedade, não podendo o seu titular exercê-lo com abuso e à margem das disposições legais acima transcritas. Ante a dificuldade de sua real comprovação quando em discussão a afetação de direitos difusos, de titularidade indeterminada por natureza, não há de se falar em dano moral coletivo.

Apelação Cível ndeg. 1.0702.03.084697-7/001 - Comarca de Uberlândia - Apelante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais - Apelado: Evérsio Donizete de Oliveira - Relator: Des. Geraldo Augusto

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de f., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar preliminar e dar provimento parcial.

Belo Horizonte, 27 de fevereiro de 2007. - Geraldo Augusto - Relator.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

DES. GERALDO AUGUSTO - Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em decorrência da sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos por ele formulados na ação civil pública por dano ambiental proposta em face de Evérsio Donizete de Oliveira, condenando o réu "a recuperar a área considerada de preservação permanente, onde recortar a sua propriedade, por meio de elaboração de um projeto, que deve ser apresentação ao IEF em 30 (trinta) dias, cuja execução deve ser posta em prática em 60 (sessenta) dias da data de sua aprovação, sob pena de incorrer em multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais)".

Segundo o articulado na peça inicial, o réu promoveu a edificação de construções em área de preservação ambiental, razão pela qual o Ministério Público pediu a sua condenação à demolição das respectivas edificações, à recuperação da área degradada e ao pagamento de indenização por dano moral coletivo (f. 15 e 16).

Inconformado com a decisão de procedência parcial, o Ministério Público de Minas Gerais interpôs o presente recurso de apelação (f. 253/281), argumentando, em síntese apertada, que o laudo pericial atesta a existência de várias construções em área de preservação permanente, incluindo-se pocilga e galinheiro (f. 257); que, com sua conduta, o réu, ora apelado, ocasionou danos ao meio ambiente (f. 261/266); que a premissa lançada na sentença, "segundo a qual a remoção das construções erigidas pelo réu em área de preservação permanente representaria imenso dano àquele, uma vez que estas corresponderiam a apenas 1,10% da toda a 'área a preservar', não podendo ser consideradas, desta feita, degradação ambiental" (f. 266) e que, no caso, houve julgamento extra petita.

Por fim, aduz que "como forma de remansear o bem jurídico agredido, qual seja a ordem ambiental, não resta aos zeladores do Direito nada a fazer, senão determinar a imediata remoção das edificações existentes em área de preservação permanente" (f. 274).

Em contra-razões (f. 284-297), o apelado sustenta, em preliminar, a inadmissibilidade do recurso de apelação, em razão de este "estar ferindo frontalmente o princípio da estabilização da demanda, o duplo grau de jurisdição e o disposto nos arts. 264 e 515, SS 1º, do CPC" (f. 288).

No mérito, aduz não ter havido desrespeito à legislação referente às áreas de preservação permanente (f. 288/291). Alega, ainda, que "a perícia técnica, bem como todas as demais provas trazidas aos autos pelo requerido, ora apelante, não deixam pairar qualquer dúvida quanto à inexistência de supressão da vegetação nativa, e tampouco que tenha sido causado qualquer dano ao meio ambiente" (f. 291) e que não há que se falar em demolição de edificação tendo em vista os princípios da isonomia e da função social da propriedade, assim como o direito à propriedade e o direito adquirido (f. 295/297).

Da preliminar.

Segundo o apelado, o recurso não deve ser conhecido porque teria o apelante, em afronta ao disposto nos art. 264 e 515, SS 1º, do Código de Processo Civil, inovado, em sede recursal, com a formulação de novos pedidos.

Com tal assertiva não se pode, entretanto, concordar. É que a fundamentação aventada em sede de razões de apelação não pode ser tomada como inovação do pedido, sendo certa, no âmbito recursal, a possibilidade de ampla articulação fática e jurídica por parte do recorrente, como conseqüência, inclusive, da efetivação do princípio do devido processo legal.

Ademais, os pedidos formulados pelo recorrente em sede recursal reafirmam aqueles anteriormente realizados na peça inicial, não tendo havido inovação, mas, em verdade, reiteração, adequando-se plenamente à sistemática recursal do nosso ordenamento jurídico.

Rejeita-se, portanto, a preliminar.

Do mérito.

O ponto central da presente controvérsia encontra-se na análise da regularidade da edificação promovida pelo apelado em área que seria de preservação permanente.

No caso concreto e específico, o apelado é proprietário de edificações que, hoje, situam-se em área de preservação permanente.

Entretanto, o que importa saber é quando se deu efetivamente o início do soerguimento das edificações, para se apontar quais as normas legais aplicáveis à época. Assim, se, quando do início das construções, foram respeitadas as normas legais pertinentes, não há de se falar em demolição.

Nessa ordem de idéias, necessário anotar que o deslinde desta ação está a depender, sobremaneira, do conjunto probatório oriundo de todo o transcorrer da instrução processual.

No caso, tem-se que hoje as edificações se localizam ao redor de uma represa artificial. Entretanto, pelo que consta da certidão do registro de imóveis (f. 90) e da foto de f. 94, a área em que se ergueram as edificações situava-se, antes, ao redor de um rio.

Fundamental, então, precisar a partir de qual data se teve a formação de um lago artificial ao redor da área edificada pelo apelado, para a adequada aplicação das normas vigentes à época das construções questionadas pelo Ministério Público, estejam elas dispostas no Código Florestal de 1965, na Lei Municipal 7.653 do ano de 2000, na Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente nº 4 de 1985 ou na Resolução 302 de 2002 do mesmo Conselho.

Segundo foto carreada aos autos pelo réu/apelado, em julho de 1997, quando do início das edificações (foto f. 95), não havia, ainda, a existência de um lago artificial ao redor da propriedade. Daí, poder-se-ia concluir que a construção se deu antes da formação do lago artificial.

No entanto, a tal conclusão não se pode chegar, porque é público e notório o fato de que o represamento das águas do rio Araguari para o funcionamento da UHE Miranda se deu ainda no ano de 1997, pois em janeiro de 1998 a usina já estava em funcionamento, conforme informa o site da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig).

No ponto, invoca-se a disposição do inciso I do art. 334 do Código de Processo Civil, segundo a qual, "não dependem de prova os fatos notórios".

Segundo, ainda, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:

"... fato notório é o de conhecimento pleno pelo grupo social onde ele ocorreu e ou desperta interesse, no tempo e no lugar onde o processo tramita e para cujo deslinde sua existência tem relevância" (Código de Processo Civil comentado, nota I:2 ao art. 334. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.700).

Ademais, ao contrário do que afirma o apelado, as fotos de f. 94/95 não permitem concluir "que em julho de 1997, enquanto o Rio Araguari passava no local, o apelado já estava edificando a atual sede do Rancho Três Irmãos, sempre de acordo com a legislação vigente" (f. 289). Pelas fotos, não se tem sequer indícios de início da construção. Vê-se, apenas e tão-somente, um monte de areia e uma quantidade pequena de telhas.

Não impressiona a alegação do perito de que "as construções já haviam sido concluídas antes do advento da Lei Municipal 7.653, de 23 de outubro de 2000 (f. 151)", porque o que realmente importa é se, à época da construção, já se tinha o represamento da água do Rio Araguari para a construção da UHE Miranda. E, pelo contexto probatório dos autos, tem-se que sim.

De se apontar que a foto de f. 97, datada de 21 de julho de 2000, ao retratar a edificação já consolidada, afasta tão-somente a aplicação da Lei Municipal 7.653/2000 e da Resolução 302/2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente.

Dessa forma a análise deve se dar com base nas normas referentes à distância da margem da propriedade até a um dado lago artificial. E, aí, tem-se o ponto.

O Código Florestal (Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965) assim dispõe acerca das áreas de conservação permanente:

"Art. 2º. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:

(...)

b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais".

Pela simples dicção legal, não seria possível a extração do significado exato da expressão "ao redor".

Nessas circunstâncias e, ainda, considerando-se a foto de f. 97, que está a revelar a existência de edificação concluída já no ano de 2000 (o que inviabiliza a aplicação das disposições contidas na Resolução 302/2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente e da Lei Municipal 7.653 do ano de 2000), deve-se, no caso, aplicar a disposição encartada no art. 3º, inciso III, da Resolução de nº 4/85 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, segundo a qual "são reservas ecológicas as florestas e demais formas de vegetação situadas ao redor de reservatórios artificiais, desde o seu nível mais alto medido horizontalmente, em faixa marginal cuja largura mínima será de 100 (cem) metros para represas hidrelétricas", que são, como se sabe, espécies de lagos artificiais.

É que, pelo até aqui narrado e, sobretudo, pelos elementos probatórios disponíveis, tem-se o seguinte quadro: à época das edificações, o réu edificou em área considerada reserva ecológica, sem respeitar o distanciamento mínimo necessário entre as construções e a represa hidrelétrica, em afronta às disposições legais pertinentes.

Nesse contexto, então, a questão primordial é arbitrar entre o interesse público/coletivo consistente na preservação ambiental do manancial do antigo Rio Araguari, e, hoje, da represa/lago artificial da Usina Hidrelétrica de Miranda, de um lado, e o interesse privado/individual, de outro, consistente no direito de propriedade do réu/apelado.

No caso concreto e específico dos autos, entre outras circunstâncias, não há, sequer, a residência permanente no local, tratando-se de área de uso para lazer. Segundo o próprio apelado, a propriedade em questão "tem função social de lazer" (f. 72).

Evidente, no caso, o dano, não apenas já ocorrido, mas aquele permanente e constante, que ocorre inteiramente e a cada momento, poluindo as águas, e o decorrente de extração de vegetação nativa do local, em prejuízo do interesse/direito coletivo/público.

Veja-se, pois, que as normas anteriormente mencionadas encartam, em verdade, disposições limitadoras do uso da propriedade e não a sua inviabilização. Assim é que o proprietário poderá manter as construções que se situarem dentro dos limites legais estabelecidos (observe-se que, hoje, a Resolução 302/2002 - Conama regula as edificações em área de preservação permanente e, ao fazê-lo, traz algumas normas que já constavam da Resolução 04/85).

Há de considerar, ainda, que a propriedade em referência possui área de 50.116,33 metros quadrados, e a área a ser preservada de modo permanente corresponde tão-somente a 5.729 metros quadrados (f. 153, resposta do perito ao quesito de número 5, formulado pelo Ministério Público). Em conclusão, respondendo acerca da possibilidade de edificação na dimensão apurada, afirma o perito, à f. 154, que "conforme mostrado no mapa em anexo, toda a faixa acima da linha dos 100 metros é passível de edificação".

Deve ser refutada a alegação do apelado, de que todas as provas constantes dos autos "não deixam parar qualquer dúvida quanto à inexistência de supressão da vegetação nativa" (f. 291). Ora, vegetação natural é a existente ao longo do leito do rio. Se, por qualquer motivo, já foi suprimida, deve ser recomposta. Ademais, conforme bem anotou a juíza sentenciante, "como esclarece o perito, a função ambiental da constituição das APPs no entorno dos reservatórios de usinas hidrelétricas 'é de proteger, principalmente, os recursos hídricos, a biodiversidade, como de resto o equilíbrio ambiental da área em questão" (f. 284).

Ante as circunstâncias narradas, atente-se para a necessidade imperiosa de se garantir, face ao princípio da máxima eficácia das normas constitucionais, a concreta aplicação do art. 225 da Constituição da República, segundo o qual "todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Conforme se sabe, tem-se conceitual e doutrinariamente a supremacia / prevalência / indisponibilidade do interesse público coletivo, distinto, em relação ao interesse privado (individual), este menor e oposto àquele.

Nesse aspecto, ressalte-se, também, que os ramos tradicionais do direito já vinham abordando a preocupação com o meio ambiente, em relação a ambos os direitos/interesses, público e privado, que vieram a desaguar, em conclusão, no disposto no SS 1º do art. 1.228 do Código Civil, estabelecendo que o direito de propriedade individual/privado deve ceder ao interesse maior/coletivo e, "ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".

Criou-se, pois, também, a função ambiental da propriedade, além da função social, podendo se estabelecer, então, a função socioambiental da propriedade que encontra respaldo anterior na Constituição da República, ao garantir o direito à propriedade, dispondo que tal deve atender e observar a conjugação indissociável dos princípios da propriedade privada, da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente (art. 5º, XXII, XXIII; art. 170, II, III, VI; e art. 225, caput e SS 3º, da Constituição da República).

É no âmbito desse regramento jurídico que deve se dar o exercício do direito de propriedade, não podendo o seu titular exercê-lo com abuso e à margem das disposições legais acima transcritas.

Na hipótese, pois, cabe a aplicação das normas que determinam distanciamento mínimo entre as edificações e os lagos artificiais, visto que, quando da formação do lago, as edificações, de acordo com o conjunto probatório que se tem, repise-se, ainda não estavam soerguidas.

No que se refere a eventual existência de dano moral coletivo, não se tem ele por configurado ante a ausência de comprovação dos elementos necessários à sua caracterização. Isso, se admitida fosse a sua aplicação.

O dano moral é ofensa a um direito da personalidade, devendo atingir a uma pessoa, que é, como se sabe, quem detém a titularidade de direitos da personalidade.

Assim, o dano moral, pelo seu próprio significado, recai sobre uma pessoa que, por alguma razão, teve um direito próprio da personalidade atingido.

Nesse sentido, o seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

Processual civil. Ação civil pública. Dano ambiental. Dano moral coletivo. - Necessária vinculação do dano moral à noção de dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual. Incompatibilidade com a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa e da reparação). Recurso especial improvido (REsp 598.281/MG; Relator para o acórdão Ministro Teori Albino Zavascki; data do julgamento: 02/05/2006; data da publicação: DJ de 01.06.2006, p.147).

Por isso, ante a dificuldade de sua real comprovação quando em discussão a afetação de direitos difusos, de titularidade indeterminada por natureza, não há que se falar em dano moral coletivo.

Com tais razões, dá-se provimento parcial ao recurso, determinando-se a demolição, no prazo de 120 dias a contar da publicação do acórdão, das edificações situadas dentro da faixa de cem metros da represa, desde o seu nível mais alto medido horizontalmente em faixa marginal, nos exatos termos do art. 2º, b, do Código Florestal c/c o inc. II do art. 3º da Resolução 4/85 do Conselho Nacional do Meio Ambiente.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Vanessa Verdolim Hudson Andrade e Armando Freire.

Súmula - REJEITARAM PRELIMINAR E DERAM PROVIMENTO PARCIAL.
 


Fonte: Jornal "Minas Gerais" - 24/04/2008

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